I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 88

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problemático para si esse discurso permitido, embora não diga exatamente em quê ou
porquê. Não se pode confiar totalmente neste narrador; embora os narradores e a
personagem divirjam em detalhes e façam provocações um aos outro, suas posições quanto
a tese do narrador-autor são bastante convergentes, e estão articuladas de maneira
complementar. Talvez o discurso do pai seja a posição mais avançada ao perceber que o
racismo colonial é um racismo produzido, e sua contra-parte atual é uma volta dialética da
moeda (e pode ser que seja essa a parte mais problemática para a tese do narrador), mas a
noção de que os brancos são a face da exploração – o que joga a disputa para um plano
apenas cultural – e o fim “
eles não nos aceitam, filho
”, são o complemento necessário para
deslocar a posição do narrador-autor e do narrador-personagem para o terreno emocional.
Esses dilemas não são dilemas apenas do texto; vivemos em tempo em que as disputas
culturais e políticas identitárias são levadas para extremos em que seus vieses de classe são
escamoteados. A fragilidade política dessas posições, ao decantar-se na forma, torna-se
uma aparente fragilidade da narrativa: há três vozes que poderiam ser ricas em contradições
entre si, mas as contradições estão apenas na superfície de seus discursos. Fragilidade
aparente porque o texto impõe um limite: não é possível afirmar com certeza a posição do
autor – quis ele denunciar a fragilidade desse ponto de vista, ou a fragilidade de seu ponto
de vista contaminou o texto? A isso pode responder o crítico biográfico; a tarefa do crítico
materialista é explorar a contradição na forma.
A segunda fratura é de corte mais fundo, e está inclusive expressa literalmente no
texto, num discurso indireto do escritor com quem Jussara travou contato: “Sonhava esse
escritor que os oprimidos (todos eles, os negros, os pobres, as mulheres...) seriam capazes,
um dia, de criar realmente um novo projecto civilizacional, de plena igualdade e liberdade
(...)” (p. 111). Aliás, essa passagem é um exemplo do bom uso do didatismo brechtiano que
João Melo combina com suas provocações. Porém é também uma das grandes crises do
nosso tempo: o stalinismo, o socialismo real fizeram muito mal ao projeto socialista e à
utopia. Deixaram feridas ainda não superadas, que vamos enfrentando agora pela
necessidade histórica, mas ainda não há uma formulação plenamente capaz de superar todas
as derrotas que o século XX nos legou. Na estrutura do texto, isso aparece como aquele
limite em que há o desejo por um novo projeto, mas a solução soa como um passe de
mágica. Em NgolaKiluanje, o projeto para Angola ressoa no antigo projeto dos que lutaram
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