I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 87

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de António, por exemplo, mesclam-se a percepção de que a situação atual foi gerada pela
situação colonial – se a história se repete, é uma vez como farsa e outra como tragédia;
então, a responsabilidade maior recai sobre quem a gerou. Por outro lado, quando fala da
ocupação dos cargos administrativos pelos angolanos pretos, é uma defesa ideológica da
meritocracia, que ignora questões de fundo, como a facilidade político-jurídica que brancos
tiveram para se capacitar para ocupar esses mesmos cargos, e a que propósito serviu essa
facilidade..
Roberto Schwartz, seguindo Adorno, nos diz que “quanto mais alto o nível, menos
contingentes as fraquezas artísticas de uma obra. Estas deixam de remeter à limitações do
autor, para indicarem impossibilidades objetivas, cujo fundamento é social. Aos olhos do
crítico dialético a fratura da forma aponta para impasses históricos” (p. 171). Essa
afirmação pode ser expandida para além da ideia de nível. Por manterem relação com as
formas de produção e distribuição de seu tempo, as obras artísticas, independentemente de
seu nível (e se é que a ideia de nível já não é questionável), acabam por ter contradições
sociais decantadas em sua forma, na medida em que os elementos externos a elas tornam-se
elementos internos estruturantes. É importante notar isso, porque dessa maneira podemos
analisar a obra independente da posição pessoal do autor – não importa qual for, ela pode
ser confirmada ou subvertida nas leituras da obra.
Assim, é menos importante saber se João Melo coaduna com todas as opiniões de
seu narrador-autor do que investigar a forma do conto e perceber de que maneira a questão
que nos interessa aqui – a equiparação do racismo produzido em Angola pela situação
colonial versus o preconceito dos negros em relação aos brancos – manifesta-se como um
limite histórico que se impõe à obra.
A partir daí, a investigação pode recair sobre duas fraturas diferentes. A primeira é
sobre a polifonia do conto: existem dois narradores que se alternam e ainda há uma cessão
longa de voz ao discurso do pai. Na superfície, essas três vozes parecem contraditórias
entre si: o narrador-autor frequentemente chama atenção para os deslizes do narrador-
personagem, que por sua vez acusa o narrador-autor de querer escrever a pretexto de sua
história, que considera simples, e esconde fatos que o primeiro quer ver narrados. Por isso
mesmo, o narrador-autor cede a voz ao pai do narrador personagem, fazendo-o ouvir
novamente o discurso que tanto o abalou. Entretanto, o narrador-autor também considera
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