por uma série de autores contemporâneos, que enfrentam em seus discursos tal estatuto.
O registro da contemporaneidade, na novíssima literatura portuguesa, especialmente no
discurso poético que venho estudando, reivindica uma interrogação: há espaço para a
prosa da vida no discurso poético do além-mar?
Tradutor de língua inglesa e autor de sete livros de poesia, Rui Pires Cabral,
objeto de minha pesquisa de mestrado, problematiza tal questão ao construir sujeitos
poéticos que materializam aspectos do cotidiano ao longo de sua obra através de uma
linguagem prosaica, o que marca a sua diferença no contexto desses novíssimos. Nessa
poética que testemunha, no registro diarístico de cada poema, a errância de um sujeito
que atravessa as grandes cidades, parece haver traços de cinismo conforme
A coragem
da verdade
(FOUCAULT, 2011), na qual Michel Foucault articulou o tema
parresía
2
na
dimensão ética de um sujeito que detém a fala franca e testemunha a verdade em seu
modo de vida num constante enfrentamento com o
nómos
3
[sic]. Neste artigo, pretendo
ler alguns traços de cinismo em
Longe da aldeia
(CABRAL, 2005), refletindo como o
sujeito poético poderia registrar e, consequentemente, construir uma resistência ao seu
tempo através do discurso poético.
Rui Pires Cabral e a novíssima literatura portuguesa
Na recente cena literária portuguesa, há pelo menos duas décadas, da última do
século passado à primeira deste século, muitos autores vêm se dedicando à publicação
de livros de poesia como forma de resistência ao
ethos
contemporâneo. Resistência a
qual o poeta e crítico Manuel de Freitas, organizador da polêmica antologia
Poetas sem
qualidades
, afirma, no prefácio, que
elaboração de trechos como este, de Amorim de Carvalho, teórico contrário ao verso livre: “Se a
disposição gráfica dos versos em linha independentes é vantajosa como primeira notação rítmica, dar essa
disposição ao que não tem a respectiva base rítmica sistematizável constitui uma mistificação. [...] o poeta
versilivrista, ao realizar versos acidentalmente, realiza-os na desordenação de ritmos métricos, o que é
ainda um caso de prosa. Entre esta e os <<versos livres>> não há senão a diferença da disposição gráfica.
Isto não quer dizer que o verso livre não possa ter beleza musical, mas tal acontece igualmente com a
prosa, isto é, com a expressão verbal que se diz prosa porque não se lhe dá a disposição gráfica dos
versos. In: AMORIM DE CARVALHO.
Teoria geral da versificação
. Lisboa: Editorial Império, 1987. 2
volume. p. 161.
2
Conceituo, aqui,
parresía
de maneira ampla, conforme o curso anterior de Michel Foucault: “[...] Um
dos significados originais da palavra grega
parresía
é o “dizer tudo”, mas na verdade ela é traduzida, com
muito mais frequência, por fala franca, liberdade de palavra, etc. Essa noção de
parresía
, que era
importante nas práticas da direção de consciência, era, como vocês se lembram, uma noção rica, ambígua,
difícil, na medida em que, em particular, designava uma virtude, uma qualidade [...]” In: FOUCAULT,
M.
O governo de si e dos outros
. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 42-43.
3
Utilizo o termo “
nómos
”, com base nas reflexões de Foucault, lendo-o como sinônimo da lei, das
convenções vigentes em determinado
ethos
.
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