a figura do “cínico”, que tem a coragem de verdade e assume os riscos de dizê-la em
seus modos de vida. Aquele que se expõe na vida pública, que vive de mendicância na
rua e que rompe com as convenções: “a pobreza cínica vai se referir [...] à roupa, ao
habitat
[sic]
reduzido ao mínimo, às posses” (FOUCAULT, 2011, p. 227). O sujeito
cínico é livre e vive à margem do
nómos
, exercendo o papel de denunciante, de
vigilante, ao cuidar de si e dos outros.
[...] o cinismo se apresenta essencialmente como certa forma de
parresía
[sic], de dizer-a-verdade, mas que encontra seu instrumento, seu lugar, seu
ponto de emergência na própria vida daquele que deve assim manifestar a
verdade ou dizer a verdade, sob a forma de uma manifestação de existência.
[...] o cinismo aparece como essa maneira de manifestar a verdade, de
praticar a aleturgia, a produção da verdade na própria forma de vida.
(FOUCAULT, 2011, p. 191)
Dos diversos modos de veridicção discutidos nesse e nos cursos anteriores, o
cinismo é abordado de maneira muito particular ao longo da história da filosofia.
Segundo o filósofo francês, pouco nos chegou como herança intelectual, pois “[...] a
tradição cínica não comporta textos teóricos, ou muitíssimo poucos. [...] o arcabouço
doutrinal do cinismo parece ter sido bem rudimentar, [característica associada] à forma
popular dessa filosofia” (FOUCAULT, 2011, p. 179). Um conhecimento fragmentário e
disperso composto de discursos de terceiros, alguns contrários, como os do imperador
romano Juliano, e outros favoráveis, como os do estoico Epicteto, que não concordava
com o corrente retrato “miserável” dos cínicos:
O cínico, diz Epicteto, é aquele que tem a coragem de dizer a verdade [...]
[Epicteto] que critica certa forma de exagero da miséria cínica] limita, regula,
de certo modo o retrato do cínico que faz em função de alguns princípios, que
são simplesmente princípios estoicos. [...] ele diz que os cínicos deveriam
evitar um excesso de miséria, um excesso de sujeira, um excesso de feirura.
Porque a verdade deve atrair, deve servir para convencer. A verdade deve
persuadir então que [sic] a sujeira, a feiura, a hediondez repelem. O cínico
deve ser de certo modo, no despojamento mas também no asseio do corpo,
como que a figura visível de uma verdade que atrai. Ele é a própria plástica
da verdade, com todos os efeitos positivos que essa plástica pode ter.
(FOUCAULT, 2011, p. 273-274)
Definir uma atitude cínica por excelência é, portanto, uma tarefa complexa
(FOUCAULT, 2011, p. 173). Talvez o único consenso que se chegue acerca dessa
opor a uma opinião, a um erro, a coragem do dizer-a-verdade. No caso da ironia socrática, tratava-se de
introduzir dentro de um saber que os homens não sabem que sabem uma forma de verdade que os
conduzirá a cuidar de si mesmos. In: FOUCAULT, M. Op. cit., 2011, p. 205.
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