2007, p. 43). Há, na recente poesia portuguesa, um constante gesto de reflexão
metapoética apesar dos discursos constituintes nesses poemas serem adjetivados como
prosaicos, como prosas da vida, sem valor “poético” por não estarem vinculados,
estruturalmente, a um estatuto de composição reconhecido e convencionado.
Outro traço cínico que julgo possível de ser lido em
Longe da aldeia
refere-se à
flânerie
. Charles Baudelaire, em
O Pintor da Vida Moderna
(1996), em sua crítica à
obra de Constantin Guys, conceitua o
flâneur
como um homem do mundo que, ao
deambular no espaço das grandes cidades do século XIX, apaixona-se pela multidão e
quer ver mundo. Acredito que tal associação seja possível devido à narrativa de várias
situações urbanas nos versos desse livro: um momento de insônia, acompanhada do
olhar à chuva e depois ao sol matutino presente no poema “This Way Out”. De outro
olhar, então direcionado ao fluxo dos viajantes nas estações de serviço no “mar alto dos
campos” de “Welcome Break”. Daquele passeio a dois num sábado em Oxford,
misturado com lembranças “do sexo e das drogas e da pop alternativa”
de “Day Trip”.
Ou um reconhecimento, “Na torre de St Mary’s,/ em Warwick/ de onde se avistam/ seis
condados/”, do lugar de estrangeiro assumido pelo sujeito “Sem nome, sem história”
do
já citado “Trinity Sunday”
7
.
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos
peixes. Sua paixão e profissão é
desposar a multidão
. Para o perfeito
flanêur
,
para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no
numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora
de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo,
estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos
pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados [...].
(BAUDELAIRE, 1996, p. 21)
Como já dito anteriormente, o modo de vida constitui-se em uma condição para o
cínico exercer a
parresía
e atentar-se para os gestos desse sujeito, que, nos poemas do
livro referenciado, se deslocada pelos espaços urbanos de Londres e Lisboa, torna-se
condição fundamental para elaborar minha leitura. Para Foucault, o cínico
[...] não poderá ter nem abrigo nem lar nem mesmo pátria [fixa]. Ele é o
homem da errância, é o homem do galope à frente da humanidade. E depois
dessa errância, depois desse galope à frente da humanidade, depois de ter
bem observado e consumado sua tarefa de
katáskopos
, o cínico deve voltar.
Ele voltará para anunciar a verdade [...]
(FOUCAULT, 2011, p. 146)
7
Os poemas citados neste parágrafo encontram-se, respectivamente, nas páginas 10, 15 e 23. In:
CABRAL, R. P. Op. cit., 2005.