Navegar ainda é preciso: traços do cinismo na poesia portuguesa contemporânea
Júlia Telésforo Osório
Mestranda
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis
Capes
RESUMO: Neste trabalho, apresenta-se a articulação o último curso de Michel Foucault,
A
coragem da verdade
(1984) e o livro
Longe da aldeia
(2005), de Rui Pires Cabral a partir do
conceito de “vida outra”. Principalmente, a reiteração de traços de cinismo na poesia portuguesa
contemporânea, especialmente dois deles: as questões da linguagem do discurso poético e o
tema da
flânerie
. Sendo o sujeito poético desse livro aquele que possuiria alguns vestígios
cínicos, comprometido com o “dizer verdadeiro”. Uma denúncia do tempo presente registrado
pelo ato poético através do relato das experiências urbanas registradas numa espécie de “diário
de viagens”, construído a partir de trânsitos desse sujeito pelas geografias inglesa e portuguesa
semelhante àquele sujeito cínico foucaultiano, que, na sua errância, materializava uma “vida
outra” através da denúncia e do escândalo no compromisso ético de atingir os outros.
PALAVRAS-CHAVE: Rui Pires Cabral; poesia portuguesa contemporânea; Michel Foucault;
A
coragem da verdade
; cinismo.
Introdução
As manifestações artísticas parecem sempre querer transgredir algo a partir de
seu elemento constituinte. Impossível, para mim, não pensar em arte sem remetê-la a
um ato provocativo. A poesia, em especial, desestabilizou e continua desestabilizando a
linguagem que a compõe a cada ato de leitura de um poema. Quando leio, por exemplo,
os clássicos textos de a
Ilíada
e a
Odisséia
de Homero, tenho a consciência de que tais
obras não narram,
ipsis litteris
, a civilização grega, apesar de serem testemunhos de
momentos históricos passados. A permanente tensão entre a semântica e a forma
configura-se em um reconhecido estatuto ao qual o poeta, no exercício de seu ofício,
deveria estar atrelado, na consciência de que cada elemento contribui,
significativamente, para a construção de um efeito poético que transgrediria a prosa da
vida no espaço do poema
1
. Essa tradicional indissociação vem sendo problematizada
1
Penso aqui, sobretudo, na cultura versificatória que dominou, durante muito tempo, a conjuntura
poética, seja crítica ou artística. As convenções a serem seguidas pela teoria do verso permitiram a
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