filosofia seja o fato de tal atitude configurar-se, independente da maneira como se
materializa (
ethos
,
nómos
, modo de vida, etc.), em uma denúncia consequente a um
corajoso ato de pronunciá-la. Independente do fato de ser limpo ou sujo, cabe a ele dizer
a verdade. A dimensão ambígua do retrato cínico, frequentemente atrelado ao cão,
testemunha a dificuldade de definir suas atitudes características e delimitar um modo de
vida cínico por excelência. Entretanto, mesmo que Foucault estivesse refletindo,
sobretudo, acerca do tema cínico materializado em textos do período helenístico
(FOUCAULT, 2011, p. 145), na antiguidade grega, é possível ler traços dessa filosofia
ao longo da história, pois o cinismo se caracteriza por uma categoria “trans-histórica”
(FOUCAULT, 2011, p. 157).
Acerca de tal categoria, Michel Foucault profere uma curiosa digressão em meio
ao seu curso dedicado à
parresía
cínica. Na segunda hora da aula do dia 20 de fevereiro
de 1984, ele desenvolve o que nomeia como “as posterioridades do cinismo” quando
expõe traços da filosofia cínica em “posteridades políticas e estéticas” relacionadas,
sobretudo, à revolução e à arte moderna. Uma importante reflexão que me permite,
neste artigo, pensar em traços de cinismo na poesia portuguesa contemporânea. A
fundamentação da possibilidade de encontrar traços cínicos ao longo da história baseia-
se na afirmativa de que a forma de existência como escândalo vivo da verdade está no
cerce do cinismo e que essa questão se encontra na arte, especialmente a moderna
(FOUCAULT, 2011, p. 158 e 163):
[...] A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo da cultura voltada
contra ela mesma. E se não é simplesmente na arte, é na arte principalmente
que se concentram, no mundo moderno, em nosso mundo, as formas mais
intensas de um dizer-a-verdade que tem a coragem de assumir o risco de
ferir. (FOUCAULT, 2011, p. 165)
Como já mencionado na abertura deste artigo, acredito que a arte deseja
transgressão, ruptura com convenções sociais ou artísticas ao longo da história. Talvez
seja esse desejo de transgredir algo, e penso aqui na questão da linguagem poética que,
não necessariamente precisa ser distante daquela usada no dia-a-dia, um dos traços de
cinismo possível de ser lido no citado livro do poeta português. Além disso, há a
presença de outro traço cínico que se articula, indissociavelmente, à arte moderna: a
questão da errância de um sujeito poético livre, que percorre os espaços urbanos da
contemporaneidade e registra a sua subjetividade, seu olhar, pela poesia, que pode se
tornar “narrativa através da exploração das pequenas histórias da vida comum e no
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