“séries recorrentes de eventos a que a experiência milenária da humanidade atribui uma
«história» típica, cujas personagens se metamorfoseiam com as épocas, os lugares e até as
pessoas que se lembram delas” (SENA, 1977, p. 62, grifos do autor). A relação mito-poesia
se faz visível na medida em que a linguagem poética é entendida como meio pelo qual a
“história típica” é recriada. Como o autor expõe, claramente, no “Ensaio de uma tipologia
literária”, o poeta não é criador de mitos, mas um outro, aquele que os tendo identificado
como pertencentes a experiência humana, recria-os na forma do poema. Dessa forma,
Fagundes (1982), numa comparação com o
Metamorphoseon
de Ovídio
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, identifica a figura
divina enfocada neste poema com a criação do homem, contada pelo romano nestes versos:
Um animal mais nobre e mais inteligente,
que dominasse os outros, ainda faltava.
Nasceu o homem, ou fê-lo com sêmen divino
o autor de tudo, origem de um mundo melhor,
ou a terra recém-separada do alto
éter retinha o sêmen do céu, seu irmão;
misturando-a à chuva, o nascido de Jápeto
plasmou-a à imagem de deuses potentes;
os outros animais, curvos, miram a terra,
ao homem, dando olhar sublime, o céu mirar
mandou e dirigi-lo, o porte ereto, aos astros. (I, 76-88)
(CARVALHO, 2010, p. 41)
Assim, o deus que dormita está relacionado, para Fagundes (1982), com o
“nascimento mítico do homem”. Acentuam essa interpretação, não só ambiguidade sexual
sugerida pelo poema, que elide a dicotomia homem
versus
mulher para centrar-se no Homem
como sinônimo de humanidade; como também, o fato de que “o deus ainda exibe vestígios da
seu estado pré-humano: com um pé sobre o outro pé e os calcanhares/um pouco soerguidos na
lembrança de asas” (FAGUNDES, 1982, p. 130). Esse semi-deus está sob os olhos de um
sujeito lírico que se quer como um observador, descrevendo em linguagem poética um corpo
divino e o cenário habitado por ele. Nessa medida, a ideia de um poeta-arqueólogo ganha
força, porque os olhos desse observador escavam o corpo do semi-deus.
Sobre a questão corporal na poesia seniana, Lourenço afirma (1998, p. 197) que
“raramente terá havido uma poesia tão atenta e elogiosa do corpo [...]”. Isso se dá porque o
corpo é entendido como “objeto de arte natural”. No poema analisado, a indistinção corpo-
natureza é vista por Lourenço (Ibidem, p. 199) como “característica do momento da
metamorfose”. Nessa medida, o corpo é enxergado como “metamorfose da natureza, no
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A epígrafe das
Metamorfoses
senianas traz a referência ao Livro I, do
Metamorphoseon
.