especulação, mais próxima do campo filosófico do que do poético, dá a medida dessa
Ante-
metamorfose
, já que a ela associa-se uma capacidade imaginativa (v. 12). Assim, enquanto
questiona aquilo que vê, o sujeito lírico vai compondo por meio da imaginação poética a
figura daquele deus que dormita num cenário em que predomina o elemento natural. A
indistinção entre o corpo da figura divina e o “areal imenso” impede que se chegue a uma
conclusão acerca da natureza última do ser observado. Dessa forma, a presença de um tempo
imemorial ganha contornos precisos e marca sobremaneira o esforço especulativo engendrado
pelo sujeito lírico. A tal ponto essa questão é sobressalente que se chega a duvidar da presença
física do observado, num questionamento que põe a prova à própria capacidade de observação
(v. 29). Fagundes (1982) se refere à “Metamorfose”, de
Fidelidade
, numa conjunção com a
importância que a nomeação de
Ante-metamorfose
sugere, como um poema constituído por
“passado mítico intemporal” (“timeless mythical past”). Assim, a tríplice pergunta do
penúltimo verso ― “Imagem, só lembrança, aspiração?” ― aponta para a dificuldade de
precisar se o deus que dorme é, ou foi, a representação material (a imagem) daquele tempo
imemorial; apenas, uma vaga ideia do que possa ter sido esse tempo (a lembrança), ou ainda,
o desejo de um retorno (a aspiração) a um momento do tempo em que a imaginação não havia
sido subjugada pela razão.
Neste ponto, três elementos compõem a
Ante-metamorfose
: a) um tom especulativo
combinado com um pensamento imaginativo; b) um cenário natural grandioso onde corpo da
figura divina encontra-se mimetizado e, c) a questão temporal como um passado mítico.
Todos esses elementos relacionam-se com a figura central do deus que dorme. O olhar do
sujeito lírico está voltado para essa figura e investiga seu corpo como um arqueólogo que
busca nos vestígios a interpretação possível ― “Imagem, só lembrança, aspiração?”. O
mimetismo inicial (vv. 1-4), construído pela passagem do tempo (v. 3, 5), faz com que surja
uma ideia de indistinção, que não chega ser resolvida ― “De perto ou longe não se
distinguia”. Essa indistinção promove a dúvida acerca da identidade da figura divina e o
cenário que lhe serve de nascedouro, ao caracterizar-se por uma oposição entre concreto e
abstrato (“Ao pé dos cardos, junto à solidão”), que carrega o sentido para uma ideia de
imensidão (vv. 27-28), só reforça aquela impossibilidade de distinguir. Assim, o sujeito lírico
assume como postura poética uma atitude crítica, que coloca o mundo em suspeição para
poder recriar-lhe os significados: a metamorfose em si.
Para Barthes (2001, p. 136), o mito apresenta-se como “sistema semiológico
segundo”, ou seja, parte de outro sistema já existente: a linguagem. Se neste poema existe um
passado mítico intemporal, a mitogenia proposta aponta para um passado cultural em que
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