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Reescritor, com o lápis de dentro
sempre se arranhando no rascunho
nos vastos espaços abertos, no cerrado.
Nesse cenário, a imagem de apoio não será:
a de remos idênticos, n’água ao mesmo tempo
cada qual de um lado, copiando-se
em andamento e cadência, paralelos
(ou simultâneos), com igual reflexo
e no meio, por onde se passa, em pensamento
a pé, a possibilidade das duas margens
o trilho do rio que acolhe, intermediário
o centro, o corpo da pedra úmida
que não apanha sol, parecendo de sombra
[...]
(FREITAS FILHO, Armando. 2003d, p 35-36).
O eu lírico “reescritor” entra em cena com a missão de revelar as possibilidades
de sua poesia disposta em conjunto, como uma obra, como uma máquina propulsora da
obra. A metalinguagem desse poema se volta para a escrita, para o rascunho, para um
cenário de margens entre o que se fez, e o que não se mostrou nos versos. No entanto, o
lápis que reescreve este caminho poético é “de dentro”, e a subjetividade do eu lírico
entra em contraste com o mecanismo da máquina, que é a poesia reunida. O eu lírico
então se autodefine como um “objeto urgente” na epígrafe que abre o livro
Máquina de
escrever
.
O que sou nesse instante? Sou uma máquina de
escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e
escura madrugada. Há muito já não sou gente.
Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto.
Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que cria outros
objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige.
[...] Há uma coisa dentro de mim
que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro.
Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto
sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem?
tal é meu destino humano. O que me salva é grito.
Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás
do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.
Clarice Lispector
(FREITAS FILHO, 2003, p. 29. Itálico no original).
O objeto dessa escrita de revisão, que é o eu lírico, se edifica “sempre se
arranhando no rascunho”, nas bases que são todos os doze livros que compõem a
máquina de escrever. Mas nessa reescrita parece não haver uma volta do eu lírico
revisor ao passado por meio de memórias explícitas. Este apenas se mede com o eu
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