A noção neste poema de que haja uma instância da existência caracterizada
apenas por aparência, pois mutável, já que transitória, em contraponto a uma essência,
contínua e imutável, se dará também, por exemplo, no poema “Mulher ao espelho”:
[...]
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
[...]
Esta apreensão da vida, de sua ciclicidade, uma vez que matéria passível de
transformações, terá seu reflexo ao tratar da morte: essa não será vista como um fim,
mas uma passagem, uma transição.
Por exemplo, seu último livro,
Solombra
, sua despedida, parece se configurar
como um monólogo racional, reflexivo progressivo, ou seja, um acerto de contas entre
seu imaginário, ou visão de mundo, e as experiências vividas, rumo a uma conclusão
definitiva. Parece-nos que sua iminente ausência pressentida é construída idealmente
enquanto há esse processo racional e meditativo, ao mesmo tempo em que onírico e
imagético (“Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo”), pois permeado de
imagens e símbolos tanto inéditos como recorrentes da obra de Cecília. Este processo,
por um lado, perpassa a realização da limitação e transitoriedade do que se faz presente,
do contingente – “nossos passos estão já desaparecidos”, “diálogos foram frágeis
nuvens transitórias” –, que não passa de ilusão – mais uma vez em conformidade com o
pensamento oriental –: “pálido mundo só de memória”, “amarga morte, suposta vida...”,
“quem somos se o canto nos envolve e rasga o tempo?”. Por outro lado, o que se faz
nítido nesta canção de despedida ceciliana é o gradual apaziguamento do eu-lírico para
com a morte que se aproxima, pois “não se recusa a esse final convite,/ em máquinas de
adeus, sem tentação de volta” e “... ainda é belo sentir a formação da ausência.” Assim,
para nós, se dá uma transição entre a reflexão sobre o vivido (através da memória),
devido à conscientização da impendente passagem pela morte, para o despojamento do
mundo em direção ao “eterno no instante”, ao “puro tempo”, em oposição ao “[...]
tempo humano [que] expira em lágrimas e cegueira”, em que se enfatiza a transição, a
passagem para outra instância ou, enfim, a continuidade do eu essencial.
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