ideológica de certas formas de literatura popular. Gullar acabou se encarregando de
“corrigir” o cordel.
O pequeno trabalho de Augusto de Campos reitera coerentemente as ideias
dispostas nos capítulos anteriores: uma delas é a de que a poesia é autosubversiva, ou
seja, exerce um potencial de significar e testemunhar o contexto, mas sobretudo
transborda fronteiras de significação. Portanto, sob esse prisma, a consciência política
na poesia dos cantadores nordestinos não pode ser contestada. É preciso lembrar que o
desafio
, subgênero de cordel analisado pelo crítico através de
Eu sou o Cego Aderaldo
,
minhas memórias de menino a velho
, editado pela Imprensa Universitária do Ceará, em
1963, herda das
tensões
medievais não somente a elaboração formal, mas a enumeração
de
impossibilia
(ou “seriação de coisas impossíveis”) que a Idade Média aproveitou da
Antiguidade greco-romana. Alguns exemplos dessa tópica foram estudados por Ernest
Robert Curtius (1996), infelizmente esquecido pelos estudantes de hoje em dia. O que
importa fixar é que inúmeros elementos da poesia antiga ressurgem na poesia dos
cantadores como a dar novo significado à forma poética, na tentativa de abarcar uma
realidade diversa. Um bom exemplo está na peleja entre Domingos Fonseca e o cego
Aderaldo, através do “tom exaltado de auto-afirmações jactanciosas, incorporando
livremente o absurdo e o
nonsense
” (CAMPOS, 1978, p. 259). Arrola Domingos:
Faço o ano mudar-se em uma hora,
Faço a noite mudar-se em linda aurora,
Faço uma rua mudar-se em cinco becos,
Faço um fogo de folhas e paus secos,
Toco fogo no mundo e vou-me embora.
(apud CAMPOS, 1978, p. 259)
O Cego Aderaldo finaliza o martelo e o desafio:
Faço lobo na cova se esconder,
Gibóia ao me sentir fica a tremer,
Hipopótamo me serve de cavalo,
Faço o Eixo da terra dar estalo,
Faço a morte ter medo de morrer.
(apud CAMPOS, 1978, p. 259)
Segundo Augusto de Campos (1978, p. 260), as soluções formais são ousadas,
assim como os jogos de palavras, as aliterações e as paronomásias, recursos que
confundem o contendor e maravilham o leitor. A peleja entre o Cego Aderaldo e Zé
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