dependências e carências em relação à cultura dos dominantes” (CHARTIER, 1995, p.
179).
Para o historiador francês, todas as disciplinas (a história, a antropologia, a
sociologia) que pesquisam a cultura popular foram atravessadas por essas duas
tendências opostas. O saldo não foi bom porque, afirmando com Jean-Claude Passeron,
as diferenças são transformadas em carências com uma espécie de remorso, e as
alteridades são vistas como um menos-ser (
apud
CHARTIER, 1995, p. 180). A solução
para esse mal-estar ideológico não está, segundo Chartier, na alternância dessas formas
de conceituação que operam uma interiorização de ilegitimidade cultural pelos
dominados e o reconhecimento de uma expressão dos dominadores. A vertente possível
estaria na articulação de dois caminhos críticos instáveis e hesitantes: o primeiro
recomenda “operar uma triagem entre as práticas mais submetidas à dominação e
aquelas que usam de astúcia com ela ou a ignoram; o segundo caminho procuraria
considerar que
cada
prática ou discurso ‘popular’ pode ser objeto de duas análises que
mostrem, alternadamente, sua autonomia e sua heteronomia” (CHARTIER, 1995, p.
190). Não diríamos que solução melhor já havia sido encontrada por Mário de Andrade
nos anos de 1930, mas o esforço intelectual do modernista paulistano para pensar a
cultura popular deu inestimável contribuição para teorizações e práticas.
Em 1932, quando dirigia a
Revista Nova
, no oitavo número da publicação e sob
o pseudônimo de Leocádio Pereira, na seção de Etnografia, Mário tece observações
valiosas sobre o conjunto de obras em cordel que reunira até então, focalizando o tema
do cangaço e mais especificamente, as histórias de Lampião sob autoria de João Martins
de Ataíde, Francisco Maraba, Mariano Ranchinho, Manuel Tomaz de Assiz Limão, José
Cordeiro e outros de autoria diversa, todos publicados entre 1923 e 1927. O texto é
“Romanceiro de Lampeão”, que posteriormente seria aproveitado por Mário no livro
O
baile das quatro artes
(1943). Não vamos discorrer sobre o texto (embora as passagens
citadas e acondicionadas por Mário sejam deliciosas), pois interessam agora, por força
do espaço reduzido, questões teóricas mais amplas.
Para Mário de Andrade, o artista pode dar roupagem erudita à cultura popular,
desde que a arte permaneça desinteressada, noutras palavras, é possível recolher da
cultura popular (seja na música, conforme sentimos em
Ensaio sobre música brasileira
,
ou na literatura, por exemplo) os elementos certos para uma transposição erudita, sem
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