lhes puseram flores/na testa; não lhe cantaram: não foi rito, foi ato/sôfrego, de
consentido assassinato”. Em outras palavras, o eu-lírico combina agora o que seria feito
em um contexto cultural diferente ao do evento e o que de fato ocorreu, deixando
implícita a dicotomia entre a sacralidade, de um lado, e a profanação da vida, do outro, e
impondo ao leitor uma reflexão qualitativa das situações contrárias pela força
impactante da expressão: “não foi rito, foi ato/sôfrego, de consentido assassinato”.
Na estrofe seguinte, há a constatação tácita tanto da realidade cultural ocidental
quanto à sua relação para com os animais, especialmente os bovinos, aqui, e o juízo de
valor que a comparação com a cultura oriental impõe: “Num domingo de sol, mataram
os três bois,/porque era preciso comer, porque era preciso haver festa,/porque era
preciso ter carne, porque a humanidade é esta...”. Há uma desilusão implícita aqui: o eu-
lírico constata a concretude cultural do evento e sua particular impossibilidade de agir
sobre a ação; legando sua participação ao exercício da palavra como único meio viável
que se denunciar o ocorrido e, ao mesmo tempo, apreender a realidade como ela é, pois,
“a humanidade é está...”, isto é, sujeita à cultura em que está inserida, cujos
habitus
lhe
são familiares e consensuais.
O apaziguamento da tensão se dá pela continuidade da constatação da
incapacidade de mudança sobre aquele meio onde há a consensual violência contra os
animais. Passividade ou impossibilidade de atuação que extrapolam o indivíduo
testemunha do evento, se expandindo para o meio natural (e talvez sobrenatural): “Por
entre as árvores, por entre as águas e as borboletas,/viram subir seu sangue, desenrolado
em fumaças pretas” e “a terra e o céu, de braço dado, e pensativos,/miravam os três bois
mortos e os duzentos homens vivos”.
A perplexidade parece se dissolver ao se concluir que nem o meio natural,
mesmo que “pensativos” poderiam evitar o ocorrido. Caberia, então, à palavra, à lírica,
documentar e denunciar o delito (visto como tal a partir do exercício da relativização).
Considerações finais
Apresentamos um panorama (módico) do motivo da morte, em contraposição à
vida, na lírica de Manuel Bandeira e de Cecília Meireles. O primeiro pendendo ora e
mais raramente para a visão de mundo judaico-cristã, ora para o ceticismo quanto à vida
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