O eu-lírico se descreve como aquele remexido, sacudido, “entre destroços do
presente”, em plena destruição caótica, cuja companhia é o “boi morto” que “rola,
enorme”. Esta companhia indesejada, pois grotesca e “enorme”, tingida pelo assombro
da morte, se intensifica em palavra ao configurar um refrão tenebroso “Boi morto, boi
morto, boi morto” – como se não bastasse sua presença apenas.
Em seguida, outra presença inusitada: “Árvore de paisagem calma” – como se
fosse possível uma árvore sobreviver calmamente em uma enchente. Mais do que isso,
ela está à margem, isenta do caos que engole o eu-lírico e com ela também fica uma
companhia: “Fica a alma, a atônita alma,/Atônita para jamais”.
Aqui, há uma diferenciação importante: o corpo vai (em movimento) no caos
junto ao “boi morto” enquanto “a atônita alma” fica (estática) junto à árvore. Parece-nos
que se dá uma ruptura entre o ideal e o real, entre a alma, intangível, junto à árvore
insolitamente sobrevivente (possivelmente por ser apenas cogitada, apenas uma ideia) e
o corpo, material, concreto, palpável, que segue nas “turvas águas” com o “enorme”
“boi morto”. A alma que está livre (e salva) uma vez que se separa do corpo, já que a
união plena seria impossível, pois corpo e alma são de materiais dicotômicos
(contrários, mesmo que complementares) e, assim, um fardo mútuo. Esta relação
incompatível nos remete ao poema de Bandeira intitulado “A arte de amar”:
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Ora, se as almas são elementos contrários ao amor, ao prazer dos corpos, são
incompatíveis com eles. Por contiguidade, pode-se dizer que a alma uma vez deixada
junto à árvore estaria, então, livre do sofrimento do corpo e “atônita para jamais”, isto é,
nunca mais perplexa, ou aturdida – sensações provavelmente suscitadas pelo contato