I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 147

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propiciada pelo romance. Essa posição pode ser observada na última carta que compõe
o romance:
Exmo. Senhor, Receio que já não se recorde de mim. Em 1888 recebi
uma carta sua informando-me que tencionava publicar em livro a
correspondência de Carlos Fradique Mendes, e perguntando-me se eu
o podia ajudar nessa tarefa. Era, dizia V. „uma forma de homenagear
o português mais interessante do século XIX‟ e era também um acto
de patriotismo, „pois nos tempos incertos e amargos que vão,
Portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe,
sob a mudez de um mármore’. Respondi-lhe que acreditava ser desejo
de Carlos manter-se morto depois de morto, longe, sob a mudez de um
mármore. Poucos meses depois, ao folhear a Gazeta de Notícias, do
Rio de Janeiro, soube que V. tinha decidido ignorar a minha opinião.
Fez bem. Na altura, é certo, revoltei-me [...] Passaram-se os anos,
envelheci e pouco a pouco comecei a compreender que V. tinha razão.
Fradique nãos nos pertence, a nós que o amamos, da mesma forma
que o céu não pertence às aves. As suas cartas [de Fradique] podem
ser lidas como os capítulos de um inesgotável romance, ou de vários
romances, e, nessa perspectiva, são pertença da humanidade. Aquelas
que agora lhe envio não é a história da minha vida. É a história da
minha vida contada por Fradique Mendes. Conseguirá V.
compreender a diferença? (AGUALUSA, 2001,137-138).
Assim sendo, os personagens passam de caracteres ou figuras estáticas para a
condição de seres universais que vão modificando sua percepção da realidade no
decorrer na narrativa. Esse processo de contaminação das cartas que se transformam em
romance garante uma visão mais irônica e complexa de uma sociedade que muitas vezes
é marcada apenas por estereótipos e visões distorcidas pela generalização. Isso acontece
na chegada de Fradique em Angola em que ele se comporta como um ser a parte, um
observador literário, de uma sociedade com demarcações sociais e raciais estratificadas.
No entanto, o herói sofre um processo de “purificação” contra a corrupção da cidade
(trazida sob a forma do tédio da Europa) ao conhece a pureza de Ana Olímpio.
Fradique reconhece sua condição de exilado a cosmopolita ao traçar uma linha
que substitui o tédio pela vontade de viver.
Quem lhe escreve esta carta não é mais o ocioso irresponsável
aventureiro que V. viu crescer, vestindo-se nos melhores alfaiates de
Paris para ocultar a miserável nudez da alma, pensando com ideias
emprestadas, sentido o mundo com sentimentos alheios, e cujo único
projecto de vida era, simplesmente, deixar-se viver (AGUALUSA,
2001,127).
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