I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 141

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nesse tempo futuro e em seu entrelaçar com um triste passado que se desenvolvem suas
duas narrativas:
Se não matarem todos os monandengues da nossa terra, eles contarão
mesmo para seus filhos e seus netos dos tempos bons que vêm aí.
Contarão, porque os olhos ainda pequenos e burros guardam essas
confusões e conversas, os tiros das noites ficaram sempre nos
corações, o pai que não apareceu mais em casa, morto no areal, o
irmão mais velho que lhe vieram buscar no jipe com porrada logo ali
mesmo e insultos e asneiras e cubatas incendiadas brilhando no escuro
[...] Nessas noites os monandengues correrão a se sentar junto de
papai ou vavô que estão lendo seus livros de agricultura ou
desenhando, no estirador, a peça mais melhor para facilitar ainda o
trabalho da máquina que outros irmãos fizeram com a sabedoria deles
e o trabalho deles. E gritarão, sem paciência para esperar, xingando
esses livros da escola com um sorriso, aproveitando para ouvir mas é
uma estória. E querem uma estória que não vem nos livros (VIEIRA,
1976, p. 45).
Sob a condição de que as crianças dessa nação não sejam todas mortas na
guerra do tempo presente e possam, dessa forma, transmitir às próximas gerações as
tristezas que se foram e os “tempos bons que vêm por aí”, delineia-se aqui uma
comunidade imaginada, formada por membros conscientes das histórias de luta de seu
povo e que se apóia nelas para a educação e a perpetuação de seu grupo. O futuro que o
narrador imagina é não somente o de uma comunidade em harmonia e orgulhosa da
história de sua nação, mas também o daquela em que cada um de seus membros saiba
ler e possa dono de um pedaço de terra, gerindo seus negócios de agricultura com a
ajuda das máquinas produzidas por seus próprios compatriotas – indícios evidentes de
um sonho socialista. Ademais, o mundo que idealiza é aquele em que as crianças
conhecedoras de sua tradição e cultura, mesmo tendo acesso à educação e livros de
qualidade, prefiram ouvir de seu avô – sua principal porta de entrada para o tempo
passado – aquelas estórias que não estão nos livros didáticos.
Essa alusão pode se referir tanto àquelas estórias da tradição oral que o saber e
a tradição escrita desconhecem, quanto àquelas estórias sobre os indivíduos que
derramaram seu sangue em nome de uma revolução, mas cujas histórias de vida não
constam nos compêndios da história oficial. Nesse caso, é uma estória do segundo tipo,
contada por vavô a seus netos, que nos transporta de volta ao passado de um mundo em
conflito. Depois de um dia de trabalho, Kamukolo, um dedicado sapateiro que é
explorado por seu patrão, ao ver um dos filhos de seu amigo sendo perseguido e
agredido pela polícia, se acerca da criança no intuito de salvá-la. Em meio a socos e
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