I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 142

141
pontapés desferidos contra ele sem que tenha direito a explicações, Kamukolo abraça-se
forte à criança – que é salva – e é morto em seguida pelos policiais com golpes de um
de seus próprios instrumentos de trabalho. Vavô, ao ver seus netos em silêncio,
refletindo sobre o trágico fim que levou o sapateiro, termina sua fala aconselhando seus
netos a nunca se esquecerem dos heróis de sua terra:
- Pois é, meus netos! Como Cardoso Kamukolo, muitos irmãos
morreram para não deixar matar os monandengues e fazer essa vida
feliz que é a nossa... Aprendam as estórias bonitas dos animais da
nossa terra, mas não esqueçam, no vosso coração, esse nome de
Cardoso Kamukolo!
E fingiu para todos que a água que saía nos olhos dele era ainda o
fumo do cachimbo.
Quem sabe mesmo se aquele mona que lhe salvaram não era vavô?
(VIEIRA, 1976, p. 52)
A comoção do personagem, bem como a última sentença da narrativa, ainda
que ambígua, dão indícios de que a criança que fora salva por Kamukolo é o próprio
vavô. Unem-se então, através da figura de um
griot
e do recontar de uma narrativa de
tradição oral, duas gerações de crianças: aquela cuja luta pela libertação lhes foi
contemporânea e aquela pertencente ao tempo futuro utópico de uma nação
independente, sendo ambas compostas por sujeitos genuinamente ativos que atuaram,
atuam e atuarão na reescrita de uma história angolana.
Rosário, ao empreender um estudo detalhado sobre a literatura de tradição oral
em Moçambique, acredita que a tradição oral funcione, nas sociedades africanas, como
uma engrenagem de transmissão de valores educacionais, sociais, político-religiosos,
econômicos, culturais, entre outros. Sendo esta tradição verdadeiro veículo de
transmissão de conhecimento, as narrativas orais surgem como reservatório de valores
culturais de uma determinada comunidade que é por vezes perdido “na amálgama da
modernidade” (ROSÁRIO, 1989, p. 40) e que busca, através do recontar de suas
estórias, garantir a perpetuação, a manutenção e a prosperidade de um grupo. Assim, as
narrativas orais seriam um meio pedagógico poderoso com uma função de nível
explícito – o de tornar a aprendizagem e a compreensão mais fáceis graças ao
acionamento da curiosidade – e uma função de nível implícito – já que ela “transporta
dentro de si própria, através da exemplaridade, o próprio objeto de ensinamento que se
quer transmitir” (ROSÁRIO, 1989, p. 41). Ainda para a autora, as narrativas de
tradição oral possuiriam caráter universal, na medida em que seus conflitos podem ser
1...,132,133,134,135,136,137,138,139,140,141 143,144,145,146,147,148,149,150,151,152,...196
Powered by FlippingBook