I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 152

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O vendedor de passados não tem um passado, não sabe sua “real” história, sua
“verdadeira” origem. Ele engendra histórias para dar destaque aos novos poderosos, que
querem ser o que nunca foram, e nem são.
Como bem nos diz Eulálio – o narrador –, a própria certeza, a própria fixidez e
estabilidade do passado são perdidas. Félix é capaz de alterar o até então imutável
tempo pretérito – aquilo que já foi – de acordo com a necessidade de seus fregueses.
Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim,
também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim
não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O
passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá
ficará para sempre.
(Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura). (
V.P.
, 2007,
p.67)
Retomando o aspecto identitário, temos uma cena significativa, na qual um
estrangeiro – em busca de uma nova identidade – conversa com Félix.
—“Bem.... O cavalheiro é branco!”
—“E então?! Você é mais branco do que eu!...”
—“Branco, eu?” O albino engasgou-se. Tirou um lenço do bolso e
enxugou a testa: “Não, não! Sou negro. Sou negro puro. Sou um
autóctone. Não está a ver que sou negro?...” (
V.P.
, 2007, p.27)
A cor da pele, os antigos estereótipos se dissolvem. Não é mais possível precisar
as características dos angolanos dentro de uma homogeneidade.
Agora, voltemos a este estrangeiro: Pedro Gouveia.
A vida de Félix muda com a chegada de José Buchmann, que até então se
chamava Pedro Gouveia, mas que ganha novo nome a partir da construção de seu novo
passado, ou melhor, mais do que um passado, este homem desejava uma nova história,
uma nova identidade, uma outra vida, a qual incorporou com veemência.
Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria
uma larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não
é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann.
Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se
nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele
homem foi José Buchmann a vida inteira. (
V.P.
, 2007, p.74)
Pedro Gouveia era português, nascido em Lisboa, e que na época da
Revolução
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, que se deu pouco depois da Independência do país, fora preso e torturado
junto com a sua esposa – negra e angolana – que estava grávida e acabou morrendo. O
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Em 1977 alguns partidários do MPLA se puseram contra o governo de Agostinho Neto (o
então presidente), pertencente a este mesmo partido.
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