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que ao conquistar a Independência, em 1975, – objetivo atingido depois da luta armada,
que teve início, mais precisamente, em 1961 – se vê entregue à necessidade de atualizar
todas as mudanças que ocorreram (num mundo em que as fronteiras perderam sua
demarcação) enquanto o país tinha como principal enfoque a libertação.
A forma como o passado é ficcionalmente arquitetado contribui para que
vejamos como os fatos são multifacetados, heterogêneos, e adquirem diferentes
significações dependendo do ponto de vista de quem os (re)organiza. Temos nesta obra
de Agualusa uma tentativa de rearticular os fatos e manipulá-los a partir de um outro
olhar; não mais dos vencedores. “Um exercício interessante [...] é tentar ver os fatos
através do olhar da vítima” (
V.P.
, 2007, pp.53-54).
Torna-se necessário preencher as lacunas da História com fragmentos
de ficção, ou reconstruir a História com uma fantasia muitas vezes
mais verossímil do que os fatos “oficiais” da história angolana. Essa
“mistura”, inclusive, faz com que o próprio leitor reflita sobre a
relatividade do acontecimento histórico já que nesse caso, o processo
de construção e desconstrução de “verdades” de acordo com o
momento histórico e o poder dominante é extremamente perceptível.
(STACUL, 2010, p.266)
Algo que nos auxilia a observar a relatividade dos fatos históricos em
O
vendedor de passados
é a imagem dos espelhos (recorrente nesta obra de Agualusa). O
jogo entre aparência e realidade, o entrelaçamento entre fato e ficção, os múltiplos
mascaramentos e distorções fazem parte deste romance. O que está refletido não é o real
objeto.
Eram artefactos de feira popular, cristais perversos, concebidos com o
propósito cruel de capturar e distorcer a imagem de quem quer que se
atravessasse à sua frente. A alguns fora dado o poder de transformar a
mais elegante das criaturas num anão obeso; a outros, o de a esticar.
Havia espelhos capazes de iluminar uma alma opaca. Outros que
reflectiam não a face de quem os encarava, mas a nuca, o dorso. Havia
espelhos gloriosos e espelhos infames. (
V.P.
, 2007, pp.53-54)
Como podemos observar neste trecho, no qual se é descrito o apartamento de
Eva Miller – mãe fictícia do até então inexistente José Buchmann – os espelhos são as
diversas focalizações e pontos de vista que podemos ter sobre um mesmo fato; os
espelhos esticam e deformam os objetos que estão à sua frente, assim como a verdade
pode ter “inúmeras faces” (Rogério Miguel Puga
apud
STACUL, 2010) a partir de quem
colonizado (pela Inglaterra); ou seja, Portugal, enquanto metrópole, não passou pelos processos de
modernização.