I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 156

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remete aos anciãos da cosmogonia africana; indivíduos que têm a sapiência aprendida
com os anos, e que são os guardiões da tradição, da cultura oral, do passado imortal.
A voz que narra. Voltemos agora a este articulador dos fatos e ficções do
romance que desestabiliza as certezas e a(s) verdade(s). A sustentação da veracidade
dos fatos cai por terra, contribuindo para relativizar a – até então – inquestionável
imparcialidade histórica, e para se certificar da impureza da verdade. Trata-se de uma
osga chamada Eulálio (sugestivo nome que significa “bom orador”); o único som que
emite se assemelha a um riso humano, peculiaridade esta que nos abre caminho para
pensarmos neste romance enquanto uma sátira, entendida aqui a partir dos
apontamentos de Alfredo Bosi.
na luta contra a ideologia e o estilo vigentes, o satírico e o parodista
devem imergir resolutamente na própria cultura. É dela que falam, é a
ela que se dirigem. Tal imersão não se faz sem riscos e arrepios: não
há nenhum outro gênero que denuncie mais depressa o partido do
escritor, as suas antipatias, mas também as suas ambiguidades morais
e literárias. (BOSI
apud
VALENTIM, 2005, p.76)
Este narrador que seleciona o que contar, que testemunha o que ocorre na casa
em que vive, que imagina, inventa, acaba por abrir espaço para pensarmos sobre estas
personagens que buscam um passado que possibilite viver numa nova – mas nem tão
diferente – Angola. Preso ao corpo de uma lagartixa há mais de quinze anos, depois de
ter sido homem em sua vida passada e se suicidado, não perdeu a lembrança do seu
passado; sua alma – detentora de suas memórias – continua a mesma.
[o narrador] pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a
experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima
aquilo que sabe por ouvir dizer). (BENJAMIN, 1994, p.221)
Outros dois fatores que colaboram para a criação deste ambiente tecido por
ficção e história são os sonhos (seis ao todo) que se intercalam na estruturação da obra,
e o último capítulo.
Interessantemente nos sonhos, o narrador se apresenta em sua forma humana, e
conversando com Félix ou José Buchmann. Tal fato dá margem a mais uma subversão:
os sonhos aproximam-se mais da realidade do que os fatos que nos são retratados; a
veracidade – ou melhor – a tentativa de afirmá-la ocorre quando Félix e Eulálio têm o
mesmo sonho.
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