dizer que Vrijburg é a alegoria do mundo civilizado. Devemos observar que Leminski
parece se equivocar no uso do topônimo Vrijburg, ou “casa forte”, em holandês, para
nomear a cidade de Olinda, quando na verdade se tratava do nome de um dos palácios
de Maurício de Nassau (FERNANDES, 2002). Mas se a cidade pode, metonicamente,
significar a civilização, um palácio pode fazê-lo com ainda mais propriedade, sendo o
centro político e núcleo civilizacional da cidade. Devemos lembrar que o romance foi
produzido no contexto de uma ditadura militar, e a desconstrução do racionalismo
cartesiano, operada pela própria linguagem inovadora da obra, pode ser entendida como
uma crítica radical aos fundamentos ideológicos de uma civilização marcada pelo
excesso de ordem e controle, impostos por meios violentos, donde sua associação com
“gaza” (forma que Houaiss considera preferível a
gaze,
mas que também é uma
referência óbvia à Faixa de Gaza) e em seguida a uma “taba rasa” (jogando com a
expressão latina
tabula rasa
). Vrijburg, ou o projeto holandês de civilização, se sente
ameaçada pela imensidão selvagem do resto do Brasil, tanto quanto a Palestina poderia
se sentir em relação a um Israel apoiado pelo poderio militar norte-americano
(lembrando que o romance é anterior à Primeira Intifada (1987), e de que Gaza foi
capturada por Israel na chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967). Em seguida, Vrijburg
é
“taba rasa de humores”,
comparada, portanto, à aldeia indígena, em referência ao
lugar selvagem, o que tem, portanto, um sentido negativo daquilo que propriamente
define a civilização. Esse sentido é acentuado pelo adjetivo
raso,
isto é, “que não tem
profundidade”, podendo ser também sinônimo de “arrasado”. A expressão
tabula rasa,
por sua vez, é proveniente do discurso filosófico empirista, significando o “estado que
caracteriza a mente vazia, anterior a qualquer experiência”, e que bem descreveria o
“estado de choque” de Cartésio perdido e doido no horto de Nassau, alegoria do mundo
incivilizado e irracional.
Essas primeiras linhas do romance já nos introduzem a alguns procedimentos
que serão recorrentes ao longo da obra, tais sejam a exploração “abusiva” da
paronomásia e de outros jogos de palavras, a polissemia propositada, que impede o
leitor de extrair sentidos unívocos, cartesianos, do texto, e a “deturpação” de tudo
quanto for frase feita, expressões idiomáticas, ditados populares. O procedimento que
ganha mais destaque, no entanto, e que deriva diretamente destes, é o da neologia,
especialmente, como veremos, na
mesclagem lexical
(“palavras-valise” ou
“portmanteau”).
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