Na terceira estrofe, podemos observar certo matiz surreal: “Fechei as portas
sozinha./Custaram tanto a rodar!”. Até então, a carga simbólica dava-se por meio de
conceitos relacionados à vida, à dinâmica e ao movimento: “dedos”, “perfume”,
“sofrimento”, “segredo”, “sangue”, “pensamento”. No entanto, subitamente, um objeto
concreto e inanimado é focalizado. Esse enfoque repentino faz com que, a princípio,
esse objeto pareça inserido sem ser contextualizado. A esse respeito, elucida-nos Darcy
Damasceno em Cecília Meireles:
O mundo contemplado
:
Dos três atributos reconhecidos no objeto, distingue-se o imprevisto;
portanto, o que o poeta julga mais significativo, e sua importância se
percebe justamente pelo inesperado do emprego. (DAMASCENO,
1967, p.23).
Além disso, as “portas” não são manejadas através do movimento convencional
de abrir e fechar, elas rodam. O ato de rodar, por demandar um prazo maior de tempo
para que se realize a ação, demonstra o sacrifício e o esforço por parte de um eu lírico
completamente solitário: “Custaram tanto a rodar!”. Por sua vez, o emprego do
pronome “ninguém” realça o sentimento de solidão e também o apelo investido em vão:
“Se chamasse, ninguém vinha.”. O verbo empregado no pretérito (“Fechei as portas
sozinha”) pode conotar também uma dificultosa tentativa de desvencilhar-se do
passado. Justamente, a estrofe seguinte (de um único verso) sugere que as experiências
do passado cedem lugar à tentativa de novas vivências: “Que caminho estranho!”. Já
mencionamos que essas curtas estrofes vêm demarcadas pela interrogação e pela
exclamação, sugerindo um tom questionador ou perplexo. Não deixamos de observar
que essa indagação e espanto são associados ao tempo presente, isto é, ao domínio do
concreto. Como se esse espaço temporal fosse estranho ao eu lírico que parece possuir
maior familiaridade com o passado (e também com o futuro). Sabemos que tanto no
passado quanto no futuro a intensidade da linearidade cronológica é enfraquecida.
Quando o passado é referido, prevalece a memória e quando o futuro é sugerido,
prevalecem a hipótese e a incerteza. Logo, justifica-se essa identificação do eu lírico
com o passado e o futuro em detrimento do presente, pois, é neles que reside a
atemporalidade, isto é, a possibilidade de transgredir as imposições do cronológico.
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