Enquanto a canção dos primórdios se realiza pela via músico-harmônica, a
canção moderna opta por dois caminhos: a harmonia e a desarmonia. Ao escolher a
desarmonia como estado de criação poética, a canção se defronta com mais um
obstáculo na avaliação crítica literária, que se vê em um dilema, indagando o que é
fazer poesia na era contemporânea. A poesia oral moderna e contemporânea e a
poesia escrita encruzilham a crítica literária, que acaba por selecionar a poesia
escrita como estudo e pesquisa do fazer poético. Consequentemente, a crítica quer
os malabarismos escritos no suporte da performance cancional e, ao não os constar
na oralidade da poesia, relega-lhe o último plano de pesquisa, encarando-a mais
como um fenômeno sociológico do que uma arte da poesia. Os traços da oralidade
poética são ignorados, e a compreensão de como se desenvolve a vivência plena da
palavra poética por meio do canto é desprezada pela academia intelectual do país e
do mundo. Entretanto, retomando Bosi, a poesia oral é uma forma de sobrevivência
da própria poesia na contemporaneidade, por isso, se faz presente e existente na
música, onde reencontra a total libertação do signo-de.
Como exemplos de poesia oral na atualidade, Zumthor (2005) cita a ópera e o
rock
, porque a voz faz a representação do universo e instaura a vivência da palavra,
tornada matéria. A teatralização do signo-de decorre, portanto, da melodia da ópera
e da antimelodia do
rock
quando há a vocalização da palavra. No caso do
rock
, a
antimelodia da música (som e voz) transmite ao público a partilha do signo-de da
violência, da revolução e da libertação de uma sociedade deficiente, racista e
corrupta:
Ainda mais óbvias que as incertezas da economia e da política mundiais era a crise
social e moral, refletindo as transformações pós-década de 1950 na vida humana,
que também encontraram expressão generalizada, embora confusa, nessas Décadas
de Crise. Foi uma crise de crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade
moderna (HOBSBAWM, 2006, p. 20).
Ao gritar contra o sistema, o
rock
traz a palavra poética em estado bruto; em
pedra lascada, conforme expressão de Paul Zumthor (2005):
O rock é como um míssel de múltiplos estágios. Ao ser lançado, nos anos 50, seu
significado era simples: sexo. Com o sexo como ignição, o rock abriu caminho para a
nova moral dos anos 60. E o propelente desta década foi a droga. Como sexo e
droga se tornaram rotina nos anos 70, os punks investiram contra o último tabu: a
violência (Joe Kane, apud MUGGIATI, 1985, p. 72).
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