olhar: fora da moldura e dentro dela. Toda a cena do plano conjunto assume, então, a
perspectiva de um segundo plano em relação a ela. Assim, a folha dupla explora, na
imagem, a função metalinguística, pois o ilustrador solicita do leitor uma reflexão
acerca da representação, conotando que aquela cena, embora integre o plano conjunto,
pertence também a outros espaços, no caso, à folha de rosto do livro e à realidade, em
que também existem pessoas glutonas e comodistas.
Nessa folha dupla, a cena da folha de rosto cria um primeiro plano, pois mais
próxima para o olhar da criança, do lado de fora da moldura. O ilustrador projeta, então,
um leitor implícito curioso e inteligente que se diverte com o jogo “dentro” e “fora”, ao
mesmo tempo que o desperta para a reflexão acerca do ato de representar, emoldurar.
Essas imagens, por meio da função lúdica, brincam com os olhos da criança, como se
saltassem do encaixe de outras, estabelecendo homologia com as bonecas russas. Dessa
forma, desautomatizam o olhar acostumado a molduras que circundam e fecham uma
determinada cena. Em um segundo momento, o leitor começa a analisar o fundo atrás da
moldura, há assim uma subversão dos conceitos de figura e fundo, pois a cena da folha
de rosto assume relevo de moldura, projetando ao fundo a moldura de um plano
conjunto.
Na leitura da cena “atrás da moldura”, o leitor percebe que também existem
planos diversos, inclusive pontos de fuga, pois há uma perspectiva. Essa cena estrutura-
se sobre fundo branco. A opção do ilustrador por este fundo põe em relevo as imagens
de cores intensas, conferindo-lhes volume e, pela sobreposição de camadas de tinta,
textura. No primeiro plano da cena situada dentro da moldura, aparece, à direita, uma
caravela com um casal descansando, enquanto passeia pelo lago. Atrás do barco, há um
cisne branco com olhos arregalados e bico aberto. Como seu olhar se dirige para a
esquerda, pode-se imaginar que essa expressão de espanto foi provocada pela
observação dos homens e do cachorro que, fora da moldura, dormem profundamente.
À margem do lago, aparece um campo de flores em que, à sombra de outra
árvore, aparece um homem sentado, dormindo recostado em seu tronco, tendo acima da
cabeça uma maçã com uma flecha atravessada, para a qual olha impressionado um
pássaro azul de olhos arregalados, conotando o risco que o homem correu sem nem
perceber, provavelmente provocado por outro inconsequente. Embora essa cena faça
remissão a Guilherme Tell, esse diálogo estrutura-se de forma paródica, pois prevalece a
crítica do animal ao comportamento de alheamento do ser humano. A focalização se
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