A forma cancional da poesia atinge aspectos físicos e emocionais em
plenitude, porque, na performance, a poesia cantada instiga a audição, a visão, o
tato, o paladar e o olfato. A performance se descreve como a recepção da
linguagem poética chega no indivíduo, no instante da leitura de uma poesia. No caso
da canção, o instante demarca-se pela voz que emite as palavras do texto,
desenvolvendo o espaço velado e sensorial do poema. O objeto de representação
passa, então, por todas as vias sensoriais, o universo de recriação alcança o ápice
na competência de se transformar real para o homem:
é ele [o corpo] que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que
vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na
experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que é próprio,
realidade vivida e quem determina minha relação com o mundo. Dotado de uma
significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo
e sou, para melhor e para pior (ZUMTHOR, 2007, p. 23).
Não há mais diferenciação entre o que é real, porque objeto e vida se fundem
na experiência poética do canto. Diante disso, Zumthor dá especial atenção à voz
que entoa a palavra poética e faz dela objeto real e material: “A voz é uma coisa. Ela
possui plena materialidade” (2007, p. 85). Para o autor, a palavra escrita, ainda que
se esforce em trazer a sonoridade naufragada no divórcio com a música, tenta
presentificar a voz leitora melodiosa, reavendo a performance perdida. Por causa
disso, comparando as declarações de Spina e Zumthor, reconhecemos dois pontos
fundamentais nas teorias: a identificação da canção como manifestação poética
praticada na atualidade e a maneira distinta de a estudar, partindo não da análise
crítica da estrutura escrita poética, já que a canção não depende dos recursos
escritos para sobreviver, e sim da tradução de como a voz reordena a palavra,
produzindo o espaço metafórico da poesia: “É inútil julgar a oralidade de modo
negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura. Oralidade não
significa analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de qualquer
função social positiva, é percebido como uma lacuna” (ZUMTHOR, 1997, p. 27).
O primeiro fundamento da teoria nos fornece uma ampla e discutível visão do
fazer poético na contemporaneidade, visto que, no início deste texto, se discorreu
sobre a condição da linguagem poética ultrapassar os limites da literatura. Se a
poesia é uma linguagem que pode ser escrita, no entanto, vimos também que é uma
linguagem de representação, indiferente ao suporte do registro escrito. Daí a poesia
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