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urbana e não rural. Eram cartas escritas na cidade, pelo homem do interior que lá vivia ou
que por lá estava de passagem e que contava ao amigo suas experiências. Por este motivo,
são “conversas” afetuosas: “Querida Cumade Zinha - pra principiá – Sodação – Ansim é que
a gente hoje desabafa o coração. Já vai indo pra dois meis, que mudei pra capitá [...]”
(CAMBARÁ, 04 abr. 1916, não paginado)
Em geral, o caipira não está sozinho na cidade, mas acompanhado pelos familiares.
Nas cartas, os membros da família acabam se tornando personagens e os leitores adentram
na lógica do grupo. O autor da carta é geralmente o protagonista e representa o pai e o
marido do núcleo familiar. Existem, em poucos casos, pseudônimos femininos, mas eles não
aparecem em
O Pirralho.
6
As mulheres que aparecem ao longo das cartas são apenas
personagens coadjuvantes, como mostra o fragmento: “Sua afiada Jeroma mais os menino
e a muié, que nunca aqui poz os pé, ficaro cheio de intriga co aquelle mundão de povo que
parecia formiga [...].” (CONCEIÇÃO, 09 jun. 1912, não paginado).
As seções de cartas caipiras publicadas no início do século XX estão fortemente
interligadas às
Cartas de Segismundo
, publicadas no
Diário de São Paulo
no final do século
XIX, sobretudo nos anos de 1865, 1872 e 1873. Estes textos foram publicados no mínimo
uma vez por mês em uma seção de “publicações pedidas”, parecida com a seção de cartas
de leitores que encontramos nos jornais e revistas atuais (FREHSE, 2000, p. 101-102). As
Cartas de Segismundo
eram assinadas por Segismundo das Flores, pseudônimo de Pedro
Taques de Almeida Alvim.
7
Segismundo era um roceiro que estava de passagem pela
cidade e é por meio das cartas publicadas que ele descrevia aos seus colegas do interior, o
dia a dia na capital. Por meio do deslocamento de Segismundo era possível perceber as
distinções entre a vida urbana e rural e os primeiros sinais da modernização na cidade.
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A narrativa epistolar era utilizada como uma forma de representar o cotidiano.
Todavia, há que se mencionar que as C
artas de Segismundo
eram fictícias, ou seja,
Segismundo descrevia uma cidade imaginária. De qualquer forma, as cartas funcionavam
como contraponto crítico às transformações urbanas. O escritor fazia o leitor refletir sobre a
vida na cidade, considerada polida, civilizada, inovadora e moderna, em relação à vida no
campo, selvagem, rústica e simples. É preciso ressaltar que, embora houvesse estes
contrapontos críticos, não havia naquele momento, diferentemente do contexto das cartas
do início do século XX, uma diferença muito arraigada entre a vida na cidade e a vida no
campo.
6 É o caso por exemplo do pseudônimo “Purcheria do Sabará”, que escrevia as “Cartas de Nhá Pulcheria” em
A Cigarra
no ano
de 1917 e em
O Sacy
em 1926.
7 Pedro Taques de Almeida Alvim participava de diversas atividades culturais e políticas do período. Era poeta e advogado,
conhecido como um dos primeiros jornalistas campineiros a trabalhar em São Paulo.
8 Para Fraya Frehse (2000, p. 102), a provisoriedade da passagem de Segismundo, própria de um “viajante”, dotava o
personagem de um olhar do estrangeiro em trânsito. Entre dois mundos, o interior e a capital, Segismundo situava-se também
entre dois espaços: a roça e a rua.