Havia, na minha rua, uma casa pequena e branca. Durante dias, lá não vivia
ninguém. Mas, se a lua era cheia, a janela se abria como um livro. Um
homem com rosto de anjo, vestido de luar, debruçava na janela e pensava, em
sossego, sobre a cidade. Mais calado que o silêncio, o homem olhava e mais
nos olhava. Todos da cidade tinham cuidado para não quebrar o seu silêncio.
Ninguém soprava uma palavra. (QUEIRÓS, 2009, p. 33)
A narrativa em primeira pessoa aproxima-se do maravilhoso fabular, visto pela
presença de um homem com rosto de anjo e vestido de luar que perpassa em forma de
sonho no interior de cada morador de uma cidade indefinida. Depois de visitar todos os
moradores da cidade, depositava em cada um o sonho do qual desejavam. Essa ação traz
em si um sentido simbólico e o final da história, de certa forma, guarda um mistério.
Bartolomeu vai além da conversa com o menino, ilustra um fazer poético, pois a
questão do tempo ganha uma conotação em que condensam o passado e o presente, o
novo e o velho. Para tanto, o escritor se apropria de uma linguagem extremamente
metafórica e poética, apropriando-se de diversos recursos estilísticos:
O tempo não tem ninho. Ele está sempre acordado, viajando e vigiando tudo.
Sabemos que ele existe porque modifica todas as coisas.
O tempo troca a roupa do mundo.
Ele muda a história, desvia águas, come estrelas, mastiga reinos, amadurece
frutos, apodrece sementes (QUEIRÓS, 2009, p. 9).
A criança apropria-se das reflexões do velho, por conseguinte aciona o
imaginário infantil, estabelecendo assim uma relação dialógica entre eles. Entretanto,
cada um garante o seu espaço, ou seja, o adulto remete idéias que se referem a sua
maturidade psíquica e física e o mesmo ocorre com a criança, visto que esta fantasia as
pressuposições do adulto “- Se o tempo come tudo, deve ter uma barriga imensa.”
(QUEIRÓS, 2009, p. 9). O velho alimenta essa fantasia e imaginação: “-Nós moramos
na barriga do tempo. Ela é mesmo vasta. Guarda até onde o olhar alcança e mais o
depois da fantasia” (QUEIRÓS, 2009, p. 9).
Entre filosofias, paradoxos, brincadeiras e depois de “brincar com a renda das
aranhas tecidas nas roseiras, de perseguir o destino das abelhas visitando o miolo das
flores, de jogar pedra no lago para quebrar o espelho das águas, o menino voltou”
(QUEIRÓS, 2009, p. 22). Ele aquietou-se ao lado do velho, amarrou os seus dedos aos
dele e interrogou-o: “- Por que seu rosto é trincadinho?” (QUEIRÓS, 2009, p. 22). De
forma poética, o velho responde-lhe: “- Com o tempo, a pele fica cheia de carinhos que
ele nos faz” (QUEIRÓS, 2009, p. 22). O velho ameniza o desconforto sentido pela
criança, pois esta também sente a angústia e a incompreensão da passagem do tempo.
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