O irônico poema “A obra lírica” é exemplo de cenas bizarras encontradas nos grandes
centros:
Anotação: A obra lírica
Certa vez vindo da lateral
Do Campo de Santana
E entrando célere
Na Azeredo Coutinho
Direção: Arquivo
Como um Josef K qualquer
Deparei-me
Com algo da espécie
Dita “humana”
De cócoras
Pondo ali no seu ovo
Atravessei e pensei
Que ali era
A obra no sentido literal (LEITE, 1993, p. 79)
Ressalta-se que a visão da urbe em Sebastião Uchoa Leite está mais ligada ao
locus terribilis
do que ao topo clássico do
locus amoenus,
seguindo, deste modo, a visão
de cidade de Baudelaire. O
voyeur
extrai das cenas urbanas personagens anônimos das
ruas: miseráveis, loucos, deficientes físicos. Ao se deparar com a espécie dita
“humana”, o eu lírico flagra com humor negro a sobrevida no grande centro. A malícia
zombeteira do título se expande na crítica ao sentimentalismo. Associando o grotesco
com o sublime, ao jogar com os sentidos de obrar/defecar, o poeta esvazia o conceito de
obra lírica, tal como definida desde Hegel, ou seja, como obra do espírito, para enfatizar
a contingência material da condição humana. É como se o poeta quisesse ressaltar que
não é possível haver criação poética que seja imune a esta realidade do ser.
O mesmo se reescreve na “Anotação 10”, no poema “O sobrevivente”, cujo
título já antecipa o ambiente de ruína e degradação da integridade humana:
O Sobrevivente
Outras vezes se passa
1...,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31 33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,...445