I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 53

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Não há dúvidas de que as histórias de Mia Couto mostram que além dos
poderes há uma vasta rede de capilaridades que confirmam as
experiências de contra-poder e revolta contra os poderes opressores. O
discurso realista-maravilhoso constrói um novo referente, para que se
possa reconstruir a história deixada de lado ou encoberta e que também
permite recuperar marcas perdidas ou esquecidas. (MIRANDA, 2008,
p.3).
Ao que tudo indica, o insólito é usado por Mia Couto como estratégia para o
entendimento de uma realidade hostil. A criança, Tiago, é um protagonista da construção de
uma nova realidade, que se desloca de um tempo conflituoso para um espaço insólito, em
uma espécie de exílio marcado pela esperança e pelo desejo de liberdade. A partir dessa
percepção, o insólito contribui para definir um novo país que nasce de diferentes etnias,
culturas, línguas e que, no seu conjunto, apresenta uma possível moçambicanidade. Esta,
por sua vez, seria resultado desse processo que une passado e presente. O insólito também
seria um fio condutor para tornar compreensíveis as disparidades e situações extremas que
compõem a formação desse povo, ajudando a explicar aquilo que, por vezes, é difícil de
compreender ou até inverossímil, seja pela sua singularidade, ou pela sua crueldade.
Em “O embondeiro que sonhava pássaros”, o que se verifica é que a narrativa se
estrutura a partir da tensa articulação estabelecida entre negros e brancos, permitindo a
construção de uma ordem opressiva do sistema colonial como forma de saber, pensar e
ensinar as gerações seguintes a adotar o discurso da diferença racial. Por exemplo, a família
de Tiago, menino que se encanta com a beleza dos pássaros, torna-se uma peça-chave para
a compreensão desse conto. Sua família funciona como uma fonte de conhecimento e ponto
de apoio, além de ter normas que devem ser respeitadas. Tiago tem a proteção da mãe,
porém, sabe que infringe as leis instituídas através do contato que faz com o vendedor. Já o
pai, figura autoritária, não aceita o contato do filho com o negro, por supor que isso
acabaria por desconstruir a experiência, a história, os valores e costumes dos colonos. Este
receio de perda de posição da identidade autoritária do pai ou de todos os colonizadores
face aos colonos também é fruto da insegurança por parte deles. Como lembra Hall (2008),
as identidades nunca são singulares, mas, sim, multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. Assim, a causa do
confronto dos personagens do conto está nas diferentes percepções de mundo, decorrentes
de diferentes visões e pensamentos.
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