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A narrativa de Mia Couto traz à tona esse aspecto contraditório, por meio do
encantamento que a história do passarinheiro suscita, dando origem a um processo criativo
de fantasia que distancia o ser do mundo no qual existe; do insólito que se segue aos
acontecimentos estranhos no bairro desde que os colonos decidem acabar com a visita do
vendedor à região. O posicionamento do narrador do conto é de perplexidade perante a
sociedade, perplexidade que se revela como diferença e conquista de um lugar social para
aqueles que vão contra o sistema político vigente na época.
A partir desse momento, há de se destacar a maneira como a transfiguração do real
se dá pela sucessão dos acontecimentos insólitos na narrativa, acontecimentos esses que
desconhecem os princípios lógicos que caracterizam o cotidiano do bairro e também das
pessoas para apresentarem situações incomuns àquela realidade:
Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências. Portas
e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas
trocadas. (COUTO, 1990, p.64).
Esses fatos surgem em meio aos elementos contraditórios da realidade, como o
afastamento do verossímil para o lugar do improvável. A narrativa, nessa perspectiva
fundada sobre o realismo maravilhoso, passa a questionar o real e a razão dentro de uma
cultura que se estabelece como normal.
Chiampi define maravilhoso como “o extraordinário, o insólito, o que escapa ao
curso ordinário das coisas e do humano”. (CHIAMPI, 2008, p. 48). Há uma aceitação, pelos
personagens, dos eventos que subvertem os fatos naturais do bairro de colonos, como as
gavetas mexidas, a abertura das portas dos armários, as janelas se abrindo e fechando e o
aparecimento de uma ave dentro do armário do governante do bairro. É importante retificar
que não é o personagem do vendedor de pássaros que formaliza o realismo maravilhoso, e
sim a subversão de situações tidas como naturais, fazendo com que o caráter misterioso se
sobressaia, de modo a apontar para a existência de outros sentidos possíveis para as coisas.
Chiampi (2008) novamente nos diz que, nesse realismo em questão, não há sobressalto dos
personagens diante de fatos insólitos, já que tais fatos não são incorporados ao mundo real,
fazendo, portanto, parte de um mundo paralelo.
Quanto à mobilização desses recursos em Mia Couto, Miranda reitera que: