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lugar. O comerciante é negro e sua atividade deturpa a ordem de um espaço definido pelas
regras coloniais, segundo as quais brancos e negros não devem se misturar. Dessa forma, os
moradores sentem-se ofendidos pela conduta invasiva do vendedor, que comercializa
pássaros em um espaço que não lhe pertence, como mostra a passagem:
– aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem
autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O
negro que voltasse ao seu devido lugar. (COUTO, 1990, p.62).
A intimidação é ainda maior porque os filhos dos colonos, maravilhados com os
pássaros, tornam-se cúmplices do vendedor, em especial Tiago, menino que mais
intensamente vivencia as fantasias suscitadas pelos animais, bem como as injustiças do
mundo colonial, que julga os seres humanos pela raça. Isto é, o interesse comunitário ou o
valor cultural seriam negociados, e a raça, na perspectiva do conto, tornar-se-ia uma
construção sociocultural em cuja base a cultura branca ainda prevalece sobre a negra.
Porém, esse pensamento é retrógrado, se se considera que a noção de raça é antes uma
construção sócio-histórica do que biológica, como se pensou em vários momentos do
século XVIII e XIV. Nesse sentido, diferenças de raça são, antes de tudo, diferenças
culturais.
Transgredindo as advertências que os pais e vizinhos lhe davam sobre ir atrás do
negro vendedor, Tiago passa a conviver com o comerciante e também a compartilhar a
beleza que os pássaros produzem:
Mas, aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um
menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago,
criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perseguir fantasias.
(COUTO, 1990, p.62).
Esse contato com o vendedor é fruto da hibridação, é o resultado da multiplicidade
de experiências que Tiago adquire com o passarinheiro. Este é capaz de modificá-lo, até
mesmo, torná-lo um personagem ainda mais fragmentado, fazendo dele o resultado de uma
cultura em trânsito. A nova percepção de vida de nosso protagonista, instaurada entre o real
e o irreal, altera o sistema lógico da realidade visível, produzindo um vazio abismal em que
podemos ver o outro lado de um acontecimento surpreendente.