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de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas
côdea.
[...] (MELO NETO, 2010, p. 218)
Este poema do autor brasileiro trata do núcleo negro, pobre e “pouco” da cabra, a quem
ele compara o nordestino alguns versos depois. A problematização social que há na obra
de João Cabral, também virá a manifestar-se em na obra de Arménio Vieira. Ao
apropriar-se do verso de João Cabral e inseri-lo em seu poema, Arménio Vieira
concretiza um dialogismo composicional por referência direta utilizando as mesmas
palavras.
Dentre os onze poemas desse livro dedicados a João Cabral, nove se iniciam da
mesma maneira: “Não há guarda chuva, João / contra”, que caracteriza o mesmo tipo de
dialogismo. Para perceber a interlocução, observemos, primeiramente, a seguinte estrofe
do poema “A Carlos Drummond de Andrade”, de João Cabral de Melo Neto:
[...]
Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos (MELO NETO, 1994, p 79).
Arménio se apropria das palavras do poeta brasileiro, coloca-se primeiro enquanto
interlocutor e, posteriormente, em sua réplica – considerando um “diálogo real” –, elege
João Cabral (“João”) como seu interlocutor, numa excelente caracterização de
dialogismo. Em outras palavras, Arménio Vieira escreve como se sua poesia fosse a
própria réplica a um diálogo real iniciado por João Cabral de Melo Neto, também, em
poesia. O dialogismo se desenvolve das três formas acima mencionadas ao longo de
todos os poemas de “Dez poemas mais um”, abrangendo, ainda, o que Bakhtin
denomina “diálogo real”, ou seja,
a forma mais simples e mais clássica da comunicação verbal. A
alternância dos sujeitos falantes (dos locutores) que determina a
fronteira entre os enunciados apresenta-se no diálogo com excepcional
clareza. Ora, o mesmo sucede nas outras esferas da comunicação