I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 107

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A união de elementos díspares, procedentes de culturas heterogêneas,
configura uma nova realidade histórica, que subverte os padrões
convencionais da racionalidade ocidental, Essa expressão, associada
amiúde ao realismo mágico pela crítica hispano-americana, foi cunhada
pelo escritor cubano para designar, não as fantasias ou invenções do
narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a
América no contexto ocidental. No texto mencionado, Carpentier visou
resgatar o significado básico de acontecimento histórico do continente
(CHIAMPI, 2008, p.32).
Alejo Carpentier coloca o leitor diante de experiências inusitadas, em contato com
um cotidiano “real maravilhoso” repleto de elementos que reforçam a ideia de, “que a
realidade é uma categoria incerta, uma entidade indecifrável para a qual não existem visões,
explicações unívocas” (ROAS, 2012, p. 117).
Mãe, materno mar
(2001), de Boaventura
Cardoso, por sua vez explora situações inesperadas num cenário propício. A história se
desenrola num comboio (trem) avariado que conduz os membros de uma cerimônia de
casamento. Esse comboio torna-se palco de brigas, mortes e disputas religiosas.
O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no prefácio do livro
O reino deste
mundo
(CARPENTIER, 2009, p. 10)não é privilégio das Américas, mas uma herança de
uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre
herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem
um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma
elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de
passagem de um ente querido em Angola. O funeral representa uma “festa” que
tradicionalmente faz parte do cotidiano das tribos. Elas vivem ao ritmo de tais cerimônias,
como vivem também ao ritmo das mudanças climáticas e das atividades agrícolas.
Carpentier desconstrói um argumento paradigmático eurocêntrico que diferencia
europeu de não europeu. Como bem define Mignolo, “não havia índios no continente
americano até a chegada dos espanhóis, e não havia negros até o começo do comércio
massivo de escravos no atlântico” (MIGNOLO, 2008, p. 289). A obra
O reino deste mundo
nos apresenta uma forma diferente de olhar a realidade e põe por terra a ideia de que há
seres superiores e naturalmente inferiores. Numa junção de fatos reais e ficcionais, num
cenário dispare encontra-se Mackandal, personagem fictício e histórico, mentor da primeira
rebelião de escravos e inspiração para a futura revolução que culminara na independência
da mais importante colônia francesa, hoje República do Haiti:
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