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O estranho realiza, como se vê, uma só das condições do fantástico: a
descrição de certas reações, em particular do medo; está ligado
unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento
material que desafie a razão (TODOROV, 2008, p.52).
O estranhamento causado pela situação ocorrida no cemitério deixa o pastor
vulnerável e vítima de uma armadilha planejada pelo guia:
O guia aproveitou então para despojar o pastor de todos os seus haveres.
Quando o líder religioso despertou já o Sol raiava. E assim na figura de
Adão chegou a Cacuso depois de uma longa caminhada, onde foi recebido
com os muitos folguedos risos. Tarde, embora, o pastor percebeu que o
Sol e a Lua não brilham ao mesmo tempo (CARDOSO, 2001, p. 78).
O cemitério é um cenário bastante explorado em
Mãe, materno mar
, já que na
impossibilidade de seguirem viagem os passageiros fazem do comboio sua casa. Uma casa
repleta de conflitos, ou melhor, uma alegoria do país. Cabe ressaltar, que Angola
experimentou um longo período de guerra civil, terminada oficialmente em 2002 com a
morte de Savimbi, líder da Unita. O comboio simboliza um estado-nação repleto de
situações insólitas. Sendo assim, após uma noite de brigas envolvendo os membros do
comboio, verifica-se o saldo final:
De manhã se fez então o apurado balanço: quatro mortos, dos quais dois
eram operários e dois passageiros, e pelo menos três dezenas de feridos.
Hela! E os ânimos voltaram a reacender. Que os familiares dos
passageiros mortos queriam vingança, esfolar os operários, ih! Enquanto
estes queriam apanhar vivo ou morto quem que tinha tirado a vida aos
seus dois companheiros. Por isso a agitação começou logo pela manhã
mal o Sol tinha acabado de nascer. Choros pelos mortos e gritos de
vingança ecoaram ainda no entremanhecer dos pássaros (CARDOSO,
2001, p. 49).
Após o conflito fatal, os passageiros precisam decidir o destino de seus mortos.
Entre os passageiros havia pessoas ligadas a diversas igrejas. Com um discurso irônico o
narrador nos apresenta a situação dos funerais:
Assim, apagadas ou adormecidas as fúrias raivosas, viajantes e operários
começaram a organizar os funerais dos quatro mortos. Questão que
parecia pacífica estava se complicar. Um dos mortos pertencia à Igreja do
Bom Pastor cujo pastor não se dava com o da Igreja de Jesus Cristo
Negro, a que pertencia o segundo morto. Questões de família, tinham se
zangado por desavenças na partilha de heranças. Outro defunto era da
Igreja do Profeta Simon Ntangu António originária de uma região
fronteiriça de donde nascera a Igreja de Jesus Cristo Salvador de Angola.