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(...) Logo, se soube com espanto, que o veneno havia entrado nas casas.
Uma tarde, ao lanchar uma rosca, o dono da fazenda de Coq-Chante caíra,
subitamente sem doenças previas, carregando consigo um relógio de
parede ao qual estava dando corda. Antes que a notícia fosse levada às
fazendas vizinhas, outros proprietários haviam sido fulminados pelo
veneno que espreitava, como que escondido para saltar melhor, nos vasos
dos veladores, nas panelas de sopa, nos frascos de remédios, no pão, no
vinho, na fruta e no sal (CARPENTIER, 2009, p.31-2).
Na obra de cunho real maravilhoso tudo é possível e tudo é permitido:
Os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem
nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os
acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria
natureza desses acontecimentos (TODOROV, 2008, p. 59-60).
O leitor não se sente impelido a decifrar os fatos, não cogita se são ou não
verossímeis, mas os aceita como componentes da ficção, como elementos de construção do
relato. O real maravilhoso é uma forma discursiva que possibilita ao sobrenatural e ao
fantástico uma convivência com o real, dentro dos limites da ficção.
A categoria do real maravilhoso criado por Carpentier pode ser usada
também em análise de obras de autores africanos. Dessa forma, o conceito de realismo
maravilhoso torna-se mais elástico e se converte numa poética na qual o extraordinário, o
insólito, o sobrenatural e os fatos mágicos são seus componentes mais evidentes:
A definição lexical de maravilhoso facilita a conceituação do realismo
maravilhoso, baseada na não contradição com o natural. Maravilhoso é o
“extraordinário”, o “insólito”, o que escapa ao curso ordinário das coisas e
do humano. Maravilhoso é o que contém a
miravilha
, do latim
mirabilia
,
ou seja, “coisas admiráveis” (belas ou execráveis, boas ou horríveis),
contrapostas às
naturalia
. Em
mirabilia
está presente o “mirar”; olhar
com intensidade, ver com atenção ou ainda,
ver através
. O verbo
mirare
se encontra também na etimologia de milagre – portento contra a
ordem natural – e de miragem – efeito óptico, engano dos sentidos. O
maravilhoso recobre, nesta acepção, uma diferença não qualitativa, mas
quantitativa com o humano; é um grau exagerado ou inabitual do humano,
uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma, de perfeição, que
pode ser
mirada
pelos homens. Assim, o maravilhoso preserva algo do
humano, em sua essência. A extraordinariedade se constitui da frequência
ou densidade com que os fatos ou os objetos exorbitam as leis físicas e as
normas humanas (CHIAMPI, 2008, p.48).