Anais do VII Encontro do Cedap – Culturas indígenas e identidades - page 20

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A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está
ligada a este momento particular da nossa história. Momento de articulação
onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o
sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento
desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de
sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais.
Há locais de memória porque não há mais meios de memória. (NORA,
1981, p. 7).
Nora opõe, então, uma “memória verdadeira” à história:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido,
ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de
repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e
incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do
passado [...]. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta,
e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une
[...]. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá
uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às
continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória
é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1981, p. 9).
A crítica histórica destrói, para Nora, a memória espontânea – ela a dessacraliza. Se
a história conserva “museus, medalhas e monumentos” (um arsenal necessário ao seu
trabalho), ela os esvazia daquilo que os faz lugares de memória. O ato de “historiografar”
determinado acontecimento significa que não nos identificamos mais completamente com
sua lembrança.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,
organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque
essas operações não são naturais [...]. Sem vigilância comemorativa, a
história depressa os varreria. (NORA, 1981, p. 13).
Ocorre o que Nora chama de uma “metamorfose contemporânea”, na qual a
necessidade de memória é, na realidade, uma necessidade da história. É uma memória que
não é mais memória, e sim história; possui a necessidade de suportes exteriores e de
referências tangíveis – daí a obsessão pelo arquivo. Não mais uma prática social, mas uma
memória que nos vem do exterior e é interiorizada como uma obrigação.
À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos
obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos,
imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada
vez mais prolífero devesse se tornar prova em que não se sabe que tribunal
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