Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 928

Ao descortinar por completo o comportamento humano, demonstrando todas os
sofrimentos que se pode ter pela ação do homem em relação aos seus semelhantes, tem-
se a possibilidade de, em meios as ruínas da existência, resgatar os afetos para, em
seguida, cultivá-los. Esse resgate dos afetos se dá, como não podia deixar de ser, de
maneira paradoxal, isto é, foi preciso o homem voltar a suas origens mais primitivas,
descer “todos os degraus da indignidade” (Saramago 1995, p. 262) para depois
“ressurgir de si mesmos” (Saramago 1995, 288), como seres humanos na sua essência.
Isso faz com que comecem a querer olhar mais profunda e sensivelmente uns para os
outros, não só física mas humanamente, como se pode observar no comentário de um
dos cegos: “Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como
se estivesse a ver-lhes a alma,…ou o espírito,”. (Saramago 1995, p. 262). Dessa forma,
a cegueira funcionou com uma forma de renascimento, uma oportunidade de as pessoas,
em meio a dor, tornarem-se melhores, mais humanas e sensíveis ao sofrimento alheio,
deixando de ter nos “olhos uma espécie de espelhos virados para dentro”, (Saramago
1995, p. 26).
Nesse sentido, a chuva que cai, torrencialmente, do céu, é muito significativa,
pois seria o elemento essencial para essa libertação de tudo que era impuro, sejam as
ações, sejam os pensamentos, levando os personagens à mudança de atitude e à
possibilidade de renascer. Embora a mulher do médico não tivesse cegado, ela sofreu,
quem sabe, ainda mais que os outros personagens, já que, durante toda a narrativa,
desempenhou o papel de testemunha do horror no qual o mundo se transformou. Talvez,
por isso, ela tenha sido a primeira a se livrar de toda aquela imundicie que tomava
conta de seu corpo. “Abriu a porta, deu um passo, acto contínuo a chuva enxarcou-a da
cabeça aos pés, (…) despiu de golpe a bata molhada, e, nua, pôs a lavar as roupas , ao
mesmo tempo que a si própria” (Saramago 1995, p. 265). Na sequência, as outras
mulheres e homens também vão se livrando de toda a sujeira que estava impregnada em
seus corpos e sentido-se já um pouco mais próximos de uma vivência digna.
A única personagem que não precisaria passar por esse percurso degradante para
depois chegar a redescobrir-se como ser humano é a mulher do médico, mas pode-se
dizer que foi a personagem que mais demonstrou crescimento em toda a narrativa, pois,
em meio a tanto sofrimento ela conseguia demonstrar grandeza e ternura. Não só
1...,918,919,920,921,922,923,924,925,926,927 929,930,931,932,933,934,935,936,937,938,...1290
Powered by FlippingBook