Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 927

evidente neste comentário da mulher do médico: “Se não formos capazes de viver
inteiramente como pessoas , ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como
animais” (Saramago 1995, p. 119).
Em contrapartida, o cão, denominado, posteriormente, cão das lágrimas, que
acompanha o grupo de cegos, comandados pela mulher do médico, de certa forma, vai
se tornando humanizado, pois, muitas vezes, é o único que “percebe” e compartilha da
tristeza sentida pela mulher do médico, consolando-a, “lambe-lhe a cara, (…) habituado
a enxugar prantos” (Saramago 1995, p. 226).
O mundo dos cegos criado no romance de Saramago é uma forma impactante de
figurativizar o dia-a-dia. Todas as atrocidades e desmandos que acontecem por causa da
mesquinhês humana no mundo real são transportadas para o manicômio e para a cidade
habitada pelos cegos.
E, como se torna claro durante a narrativa, “não há limites para o mau”
(Saramago 1995, p. 144). A perversidade humana continua a traçar contornos ainda
mais violentos. Isso se dá quando o homem nega ao próprio homem o básico para a sua
sobrevivência, argumentando que “o melhor era deixá-los morrer à fome,” (Saramago
1995, p. 89).
Ainda mais doentio é o comportamento dos cegos “ladrões” que roubam a
comida e começam a usurpar os outros cegos da maneira mais baixa, ferindo o pouco de
dignidade que ainda podia restar nas mulheres das outras camaratas do manicômio,
fazendo-as entregarem-se a eles em troca de um mísero alimento e para não morrerem
de fome: “durante horas haviam passado de homem em homem, de humilhação em
humilhação” (Saramago 1995, p. 178).
De fato, ao longo da narrativa acentua-se a crítica feita a uma sociedade que
perdeu todos os seus valores morais e éticos e deduz-se, tristemente, que “o mundo
todo está aqui dentro” (Saramago 1995, p. 102). Todos os aspectos salientados no texto
corroboram para escancarar a “sujidade insuportável da alma” (Saramago 1995, p.
265), e a pequenês em que está reduzido o homem nos tempos atuais.
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