Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 926

. Assim, são identificados apenas como: o médico, a mulher do médico, a
rapariga dos óculos escuros, o rapazinho estrábico, o primeiro cego, a mulher do
primeiro cego, o velho da venda preta. Essa forma de identificar as personagens, assim
como o fato de não se ter na narrativa uma marcação temporal nem espacial, fortalece o
sentido alegórico que se pode atribuir ao texto.
De acordo com Saramago (1995a, p. 158) “Os meus cegos podiam passar sem
nome, mas não podiam viver sem humanidade”. Por isso, o leitor se assusta, ao perceber
que sua fisionomia está retratada naquelas personagens que estão vivendo uma situação-
límite. A partir de cada ação e reação das personagens, o leitor se sente em choque, pois
todas as máscaras do ser humano vão sendo retiradas até deixá-lo no seu estágio
primitivo; no entanto, carregados de personalidade, sendo uns tão diferentes dos outros.
A narrativa de Saramago propõe uma análise do quotidiano tendo como mote a
cegueira, entendida, aqui, como representação da falta de solidariedade e amor do
homem diante do seu próximo. De acordo com Seixo (1999 p. 111), “o mundo dos
cegos reproduz, de facto, o mundo que se supõe ser o de cá de fora”. Por isso o leitor
fica incomodado, dando conta de que o caos descrito na narrativa é, muitas vezes, o
mesmo caos em que se vive, no mundo real, dos olhos que veem, mas que nem por isso
fazem questão de enxergar, isto é, mesmo vendo, tendo consciência, não se busca
modificar a realidade circundante. E é esta a pior forma de cegueira, quando, mesmo
com olhos perfeitos, o ser se recusa a olhar, de fato, para dentro e para fora de si,
procurando suas próprias verdades e buscando reparar no mundo que o cerca e
perceber-se nele como agente da açao e reação de um todo que se mostra desordenado.
A obra pode ser vista ainda como um ensaio sobre o comportamento do ser
humano, demonstrando que, na luta pela sobrevivência, o homem tende a ser cruel e
egoísta, como torna-se evidente no comentário do primeiro cego quando é destratado
por um funcinário do ministério da saúde ao tentar alertar sobre a epidemia: “é desta
massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade” (Saramago
1995, p. 40).
Todas essas formas de cegueira vão contribuindo para a progressiva degradação
das personagens, fazendo com que sofram um processo de animalização, como fica
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