I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 66

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Diferentemente dos retardos do enredo que buscam uma explicação para um determinado
fato narrado somente no presente, em
Portagem
o narrador em terceira pessoa usa deste recurso
como forma de reconstruir, frisar e dar destaque a dor e a fragmentação da personagem protagonista
também, que, além de fixar a ideia dolorosa que a cor mulata deixa em sua estirpe numa sociedade
extremamente desconfiada e preconceituosa, reitera o vagar de uma vida sem um local fixo, ou seja,
Xilim anda por diversos ambientes, tanto geograficamente como subjetivamente, como se fosse um
grande forasteiro de sua própria morada, buscando recompor os pedaços de uma vida que foi
fragmentando-se ao longo de sua caminhada.
Há muitas partes do romance em que o passado de Xilim é reconstruído como forma de
recapitulação de sua trajetória no presente, como se a composição da personagem necessita-se de
uma firmação constante ao longo de todo o romance, ao passo que este recurso reforça o poder e a
importância do passado em seu presente, tanto que as reflexões guiadas pela voz narrativa colocam
interrogações, incertezas e demarcam as desilusões de um caminho percorrido clandestinamente
pelo herói:
Ele nasceu para andar de terra em terra, sem poder parar muito tempo no
mesmo lugar. Hesita muito antes de decidir. Volta a lembrar-se do
Marandal, de patrão Campos, da mãe Kati, de Maria Helena, do capataz
Uhulamo, de avó Alima. Lembra-se da sua meninice, em liberdade, para
depois o irem buscar e deixarem-no em casa do dono da mina. Lembra-se
do seu regresso à povoação, com seis anos de andanças por outros lugares,
embarcado. Vê-se em frente do mulato engajador, acusando-o de vender
os negros para as minas do Kiniamato, do outro lado da fronteira.
Consentira em ser outra vez o moleque da casa, quando patrão Campos
caiu da encosta da serra e os mineiros não queriam entrar mais no poço
onde tantos companheiros tinham morrido soterrados. E lembra-se da
manhã em que deixara para sempre os domínios de Maria Helena, dona do
seu destino proscrito. É a única saudade que realmente lhe dói, é a da
velha neta do escravo Mafanissane, senhora só da planície abandonada do
Ridjalembe até que morreu e as aves da terra lhe comeram os olhos.
(MENDES, 1981, p. 51-52)
Assim, a fim de adquirir respostas sobre o encaminhamento de seu destino, despertado pela
vontade de descobrir quem é e qual seria o propósito de ali estar, encontra as respostas mais
amargas possíveis às suas curiosidades, visto que não consegue fugir daquilo que já estava escrito,
marcado e pronto para ser cumprido. E sobre isto, a busca incansável do homem pela verdade,
segundo Otto Maria Carpeaux, há uma condução para consequências “diabólicas”:
Foram homens que quiseram saber a fundo das coisas, tudo. Édipo
também quis saber tudo. E chegou a sabê-lo...Também temos, aliás,
1...,56,57,58,59,60,61,62,63,64,65 67,68,69,70,71,72,73,74,75,76,...196
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