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diante do sangrar de cada negro escravo. Esse é apenas um entre os infinitos quadros da
violência histórica em que seus atores, despreparados para conviver com os diferentes,
demarcaram com as lágrimas de inocentes o território daqueles que apenas lutavam em
busca de um espaço e de um reconhecimento na sociedade brasileira.
Diante dessas atrocidades, como não poderia ser diferente, era comum a fuga
de negros para os diversos quilombos espalhados pelo Brasil afora porque, por mais
inseguras que pudessem parecer tais moradias, era somente nelas que os negros
encontravam o refúgio e a certeza que a suas dores poderiam mantê-los unidos e
fortalecidos. Essa foi à verdadeira trajetória dos negros em nosso país: um misto de
dores físicas e psicológicas que, ao desvalorizar a raça e a cultura africana, impunhaà
indignidade humana como bandeira tremulante de seus algozes.
Julien Freund (1983), conseguiu esmiuçar o verdadeiro sentido dessa violência
desmedida que, através da coação, foi a responsável pela imensa ilha construida pelos
brancos para isolar os negros. Entender como ocorreram essas violências é
indispensável para que tenhamos em mente não só as marcas físicas tatuadas pelos
açoites, mas, acima de tudo, o sentimento de coisificação introjetado em cada negro e
que supera todos os outros tipos de arsenais utilizados como forma de silenciamento:
A violência consiste em uma relação de potência e não simplesmente
de força que se desenrola entre vários sujeitos (no mínimo dois),
sejam para forçar direta ou indiretamente o outro a agir contra a sua
própria vontade e executar uma vontade que lhe é estranha, submetido
a ameaças de intimidação, através de meios agressivos ou repressivos
capazes de atacar a integridade física ou moral, os seus bens materiais
ou suas ideias, seus valores, anulando suas resistências, sejam elas
supostas ou deliberadas (FREUND, 1983, p. 98).
A explicação de Freund nos reporta, com toda propriedade, a mais cruel de
todas as amputações morais e físicas aplicadas à raça negra: o direito de viver com
dignidade e a privação de sua liberdade em defesa de suas ideias e de seus valores. Nas
palavras de Michael Pollak (1989, p. 5), essas maneiras de destratar os negros estavam
politicamente consentidas e aplaudidas por uma sociedade capenga que não via com
bons olhos perder a grande massa escrava que sustentava seus caprichos e servia para
enaltecer a elite da época: “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais”.
Desse modo, podemos compreender que a memória, individual ou coletiva,
contribuiu para a análise de determinados grupos e realidades históricas que ao