Assim, passar de uma consciência ptolomaica de linguagem para uma
consciência galileana implica, antes de tudo, compromisso assumido com os outros que
vivem dentro de nós e que foram constituídos na relação com os nossos outros
exteriores: uma profusão de vozes emergentes e imersas. Significa assumir também que,
muitas vezes, sofremos de um duplo esquecimento, entendido por Pêcheux, como: a)
esquecemos que a linguagem não é transparente, que o sentido não é evidente; este
‘esquecimento’ nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a
linguagem e o mundo. Esse ‘esquecimento’ estabelece uma relação ‘natural’ entre
palavra e coisa; b) esquecemos que não somos a fonte de nosso dizer, mas que
operamos sempre no já dito, milenar e anônimo.
Essa ilusão de ser o centro de nosso dizer, poderosa entre nós, nos faz esquecer
que qualquer discurso só tem significado se estiver em relação com outros discursos,
que ele só significa, por conseguinte, na memória discursiva, na profusão de ‘já-ditos’ e
de suas circunstâncias. Esse ‘esquecimento’ reflete o sonho adâmico: o de estar na
inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que
significariam apenas e exatamente o que queremos. ‘Esquecemos’ que ao nascer os
discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se
originam em nós. Isso não significa que não haja singularidade na maneira como a
língua e a história nos afetam. Mas não somos o início absoluto delas: elas se realizam
em nós na sua materialidade, que é uma determinação necessária para que haja sentidos
e sujeitos. Por isso Pêcheux vai considerar que esse esquecimento é estruturante, parte
da constituição dos sujeitos e dos sentidos. Por isso, podemos afirmar que essas
‘ilusões’ não são ‘defeitos’, são uma necessidade para que a linguagem funcione nos
sujeitos e na produção de sentidos. ‘Esquecemos’ o que já foi dito - e este não é um
esquecimento voluntário - para, ao nos identificar com o que dizemos, nos
constituirmos como sujeitos. É assim que retomamos palavras já ditas, como se elas se
originassem em nós e é assim que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento,
significando sempre de muitas e variadas maneiras. São, assim, as mesmas palavras
mas, ao mesmo tempo, sempre outras: a constituição determina a formulação, pois só
podemos dizer se nos colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória).
Todo dizer, na realidade, já se encontra na confluência de dois eixos: o da memória
(constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos.