seguisse outro princípio que não o do bem comum e da verdade. Segundo ele, não
podemos atribuir hipocrisia a esse comportamento; nenhum sistema pode funcionar
maciça e deliberadamente com base na impostura intencional e permanente (nem as
ditaduras mais severas conseguiram). É necessário que as pessoas acreditem naquilo que
fazem e que assumam uma orientação socialmente aceita e que não se pode resumir a
proclamar, cinicamente, que ‘este mundo tecnológico não é para qualquer um’: antes,
consiste em acreditar na maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige
obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja liberal, que professa a igualdade e a
fraternidade, que acreditemos estarem aí as oportunidades para todos (2000, p. 21). A
imagem da tolerância com os menos afortunados oculta o caráter absoluto do poder,
mas também aquilo que Nietzche, em
A genealogia da moral
chamou de "consciência
da dívida": o advento do Deus cristão, como a mais alta expressão do divino, produziu o
máximo do sentimento de obrigação. Obrigação da dívida com um Deus que se ofereceu
em sacrifício para pagar as dívidas do homem (s.d., p. 82-83).
É desse modo que funcionam os interdiscursos. Assim, não é preciso que haja
alguém ‘orquestrando’ ou ‘comandando’ as cabeças pensantes para que mantenham essa
orientação monológica de entendimento do mundo. Não é necessário que o governo,
com seu ‘mau-caratismo’, seja o maestro de tal imposição. É no interdiscurso que
iremos buscar o mecanismo de funcionamento do discurso, que sustenta a crença de que
estamos corretos.
4
Alfredo Bosi diz que o que motiva o trabalho do conhecimento é a vontade de
valor. Só o que
vale,
vale a pena. Só o sentimento do valor guia o esforço de
compreender os homens e as coisas, elege os temas, bebe na fonte os dados originais,
desperta áreas amortecidas da memória, aviva as brasas ocultas sob a cinza do vivido,
aguça a percepção dos liames formais e quase compele a mente ao desenho de certas
conclusões. E, para que a ciência não regrida a simples máscara do interesse que a
motivou, faz-se ainda necessária a vigência de um metavalor
,
‘a vontade de verdade’,
que torna o sujeito honesto em face de seu objeto (1992, p. 350)
Assim, transfigurar a lei injusta do capitalismo em ‘modernidade’, ‘necessidade
de mudança’, ‘democracia de mercado’ é um exercício humano, que se estabelece pelas
atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos, pessoas, ações, possível
4
ECO, Umberto. "Acontece que os personagens são forçados a agir segundo as leis do mundo em que
vivem. Ou seja, o narrador é prisioneiro de suas próprias premissas."
Pós-escrito a O Nome da Rosa
.
Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985, p.26.