permanecêssemos apenas na esfera de nossa autoconsciência cultural
contemporaneamente adquirida; aspectos que poderiam parecer naturais, contínuos,
permanentes, substantivos, essenciais, caso não conhecêssemos outro
modus vivendi
.
Esse contraste, a que José Luis Jobim chamou de alteridade radical, mostra que há uma
socialidade por trás da construção de grande parte do que consideramos como natural. E
exemplifica: os discursos do século XVIII, por sua alteridade radical em relação aos do
nosso século, desqualificam muitas de nossas pretensões à naturalidade, ao mostrarem,
por contraste, por diferentes entretecer de discursos, essa construção coletiva de um
modo de vida que é, ao mesmo tempo, igual e diferente (1997, p. 8).
Pêcheux aponta para aquilo que considera responsabilidade do ser humano:
saber-se despossuído de sentido, mas ao mesmo tempo responsável por aquilo que
diz/faz, ao escrever: "Face às interpretações sem margens nas quais o intérprete se
coloca como um ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se aí, para mim, de uma
questão de ética e política: uma questão de responsabilidade" (1997, p. 57).
Por isso é que a simples interpretação daquilo que se diz/faz é insuficiente para
que entendamos essa ou qualquer outra questão com mais profundidade. Isso porque as
relações de poder que se estabelecem não se dão a conhecer explicitamente, mas antes
aparecem como ‘naturais’. É por isso também que Foucault propõe que prestemos
atenção não ao que se diz, mas sim ao ‘como’ se diz. Nietzche escreve, em
Além do
bem e do mal
, uma passagem que, apesar de longa, merece ser aqui transcrita:
Perdoem este velho filólogo
i6
que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de
interpretações ruins; mas essas "leis da natureza", de que vocês, físicos, falam tão
orgulhosamente, como se - - existem apenas graças à sua interpretação e péssima
filologia - não são uma realidade de fato, um "texto", mas apenas uma arrumação e
distorção de sentido ingenuamente humanitária, com a qual vocês fazem boa concessão
aos instintos democráticos da alma moderna! "Igualdade perante a lei: nisso a natureza
não é diferente nem está melhor do que nós" - uma bela dissimulação, na qual mais uma
vez se disfarça a hostilidade plebéia a tudo o que é privilegiado e senhor de si, e
igualmente um segundo e mais refinado ateísmo
. "Ni Dieu ni maître
[Nem Deus , nem
senhor] - assim querem vocês também: e por isso "viva a lei natural!" - não é verdade?
Mas, como dizer, isso é de interpretação, não texto, e bem poderia vir alguém que, com
intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na mesma natureza, tendo em vista
os mesmos fenômenos, precisamente a imposição tiranicamente impiedosa e inexorável
de reivindicações de poder - um intérprete que lhes colocasse diante dos olhos o caráter
não excepcional e peremptório de toda "vontade de poder", em tal medida que quase
toda palavra, inclusive a palavra "tirania", por fim parecesse imprópria, ou uma
metáfora debilitante e moderadora - demasiado humana; e que , no entanto, terminasse
por afirmar sobre este mundo o mesmo que vocês afirmam, isto é, que ele tem um curso
6
Nota do tradutor: Nos textos de Nietzsche, ‘filologia’ denota sobretudo a arte de ler bem, com rigor e
vagar, precisão e paciência.