percebe-se que Paulo e Eduardo estão para interrogatório por serem os principais
suspeitos do assassinato, cujo corpo descobriram às margens do
lago
, seu antigo refúgio
paradisíaco. Nesse momento, o leitor/enunciatário é convidado mais fortemente a
preencher o vazio na ponte sentido identificatória do ponto de vista cultural entre a
década de 1960 no Brasil, a repressão e a polícia por meio das vozes da infância de
Eduardo e Paulo, defendendo-se em uma situação adulta
3
. O que se segue é o
desvelamento de um interrogatório digno da teledramaturgia à moda do cinema
americano, ambientado nos anos rebeldes de Beatles e Rolling Stones: duas crianças são
atingidas por uma série de ofensas, para que digam a verdade, sendo que Paulo, devido
à cor morena de sua pele, sofre maior número de infâmias, as quais culminam com a
última fala da
cena
(
O pai do mulatinho chegou.
p. 25).
A partir deste ponto entramos no terceiro ambiente agiográfico da narrativa:
a
casa de Paulo
. No plano de expressão, voltamos aos diálogos desestruturados do início
desse mesmo capítulo, porém o que se delineia no plano de conteúdo é o discurso do
repórter televisivo narrando a violência doméstica no mesmo tom dramático de peças
midiáticas brasileiras veiculadas como pequenos filmes de ação americanos:
A primeira bofetada, com as costas da mão, atingiu Paulo no ouvido direito. Ele se
desequilibrou, uma dor afiada entrando pelo crânio, e só não caiu porque outro tapa,
desta vez com a palma da mão, acertou-lhe o lado esquerdo da cabeça, jogando-o contra
a mesa de jantar. [...] Sangue ruim, dizia o homem louro espadaúdo, sangue ruim,
repetia, apertando os olhos azuis sob cílios tão claros que às vezes pareciam brancos,
você tem sangue ruim como o da sua mãe e de toda a família dela, moleque filho da
puta.[...]
Não tinha para onde ir. Nem quem o acolhesse. Deixaria o pai ainda mais furioso. Seria
pior. [...]
Você não presta, seu moleque de merda, tem sangue ruim que nem eles, moleque
vagabundo, tu é bem o sangue deles, tu é vagabundo que nem os parentes da tua mãe.
Paulo abaixou a cabeça e, mais uma vez, sentiu uma dor funda, a mesma que sentiria
tantas vezes no futuro, quando se lembrasse daqueles momentos com o pai, uma dor que
sabia não vir apenas das pancadas, mas que ainda não tinha como localizar nem
entender. (pp. 25-26)
Ao findar do espancamento, Paulo refugia-se no
quarto
que divide com o
irmão Antônio de 16 anos, o qual se refere a nosso protagonista como
Neguinho
.
Vemos, então, crescer a caracterização do irmão mais velho como um típico macho
brasileiro estereotipado: Antônio está preocupado apenas em possuir o maior número
3
- Nem tocamos nela, moço. Encontramos e eu disse ao Paulo que era melhor a gente vir aqui na
delegacia para contar que nós encontramos. O corpo.
- E eu te disse que era melhor a gente não se meter com a polícia!