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Na cidade do Salvador de meados e fins do século XIX, o mercado de trabalho
poderia ser dividido em duas grandes esferas – a do trabalho livre e a do trabalho escravo.
Havia, como escreveu Katia Mattoso (1992, p. 530), uma “dupla estrutura do trabalho
urbano”. Essa dupla estrutura compunha-se de um segmento constituído por trabalhadores
brancos, mulatos e negros livres e outro segmento constituído exclusivamente por escravos.
Num contexto em que o exercício de alguns ofícios era vedado aos escravos, é fundada a
30 de outubro de 1870, por tipógrafos soteropolitanos, a Associação Tipográfica Baiana.
Não se sabe se a atividade gráfica era interditada aos escravos, dado que no universo das
“artes e ofícios” havia uma hierarquização em que se compartimentava essa estrutura em
ofícios prestigiosos e outros não. Mattoso relaciona alguns desses ofícios considerados
prestigiosos em meados do século XIX. Eram eles os de ourives, colchoeiros, fabricantes de
mastros ou relojoeiros; já os ofícios de toneleiro, caldeireiro, serrador de madeira e calafate
entre outros, eram considerados atividades mais humildes (MATTOSO, 1992, p. 534). No
levantamento realizado por essa historiadora, não aparece o ofício de tipógrafo nessa
relação hierárquica da estruturação das ocupações. Contudo, por outras evidências
2
, sabe-
se que o trabalhador do setor gráfico via-se, nos termos de hoje, como uma “categoria
profissional” privilegiada.
Robert Darnton, analisando o massacre de gatos relatado por Nicolas Contat,
capitaneado por Jerome (segundo Darnton, tal personagem seria o próprio Contat) e
Léveillé, dois aprendizes numa tipografia parisiense, assinala evidências das diferenciações
que hierarquizavam o mundo das atividades artesanais. Quando da passagem do
personagem Jerome pelo ritual chamado “o uso do avental” (
la prise de tablier
), que, ao que
parece, ocorria logo depois da entrada na oficina tipográfica, e os operários terem se dirigido
à taverna preferida, emissários que eram enviados aos açougues pregavam que
determinados cortes de carne somente eram dignos dos tipógrafos, e outros, inferiores,
deveriam ser deixados para os sapateiros, um ofício menos digno que o daqueles
(DARNTON, 1986, p. 116). No espaço restrito que determinados ofícios instituíam para si no
mundo do Antigo Regime, várias oposições eram estabelecidas. Tanto em relação à
moralidade burguesa farisaica como também em relação a outros trabalhadores.
Os operários [
tipógrafos
] posicionavam sua ‘república’ contra esse mundo
[
dos burgueses
], e também contra outros grupos de oficiais assalariados –
os sapateiros, que comem cortes inferiores de carne, e os pedreiros ou
2
Cf. DARNTON, Robert.
O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa
. Rio de Janeiro: Graal,
1986, p. 116; VITORINO, Artur José Renda.
Máquinas e Operários: mudança técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio
de Janeiro, 1858-1912)
. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000, pp. 96-7. Além dessas referências que, no primeiro caso,
tratou-se de tipógrafos franceses protagonistas do hoje célebre (pelo menos entre os historiadores) massacre de gatos numa
oficina tipográfica parisiense do Antigo Regime; e, no segundo caso, tratou-se de tipógrafos do Rio de Janeiro no século XIX;
encontramos referências às especificidades do ofício nos próprios impressos da Associação Tipográfica Baiana, vide, a título
de exemplo, a
Revista da Associação Tipográfica Baiana
, nºs 15 e 16, p. 35-38, em que foi publicado o discurso proferido pelo
tipógrafo Joaquim Cassiano Hyppolito na sessão de fundação da Associação em 30 de outubro de 1870; também no mesmo
periódico, os nºs 8 e 9, p. 130-132, e o nº 3, p. 52-53.