Anais do VII Encontro do Cedap – Culturas indígenas e identidades - page 121

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Os olhos do tigre-carrasco brilharam. Estraçalhar animais era o seu grande
prazer. Lambeu os beiços e armou o bote para lançar-se contra o trêmulo
burro. Mas ficou no bote. Uma enorme pedra lhe caiu do teto da caverna
bem no alto da cabeça –
plaf
! Grande berreiro! Correria! Desmaios das
damas. Quem é? Quem foi? Fora obra do Peninha. (LOBATO, 1956a, p.
279)
A mesma destreza e familiaridade com os animais a personagem demonstra ao pular
no lombo do burro que passa correndo por ele. O salvamento das crianças, feitas
prisioneiras por Simão XIV, o rei do país dos macacos, confere-lhe ares de herói. A fuga
facilitada pelo manejo da “planta dormideira”, ingerida com a água do poço por todos os
macacos, inclusive os sentinelas, intensifica a construção de uma personagem conhecedora
da condição original, natural, não civilizada do homem.
A sabedoria genuína, inúmeras vezes associada à composição ficcional desta
personagem, é típica de quem é natural do lugar em que habita e descende das raças que
ali sempre viveram. Tudo isso a torna, destarte, afinada com o modo de vida que se pode
vincular aos dos seres autóctones, ou seja, indígenas. A leitura que associa Peninha a Peter
Pan faz sentido, uma vez que a história de James Barrie incorpora passagens com os índios
peles-vermelhas, como é sabido. Há, no entanto, índices não desprezíveis que aproximam a
composição de Peninha a de uma personagem icônica do indianismo brasileiro: Iracema.
O que se depreende é, pois, um intertexto: ao conceber sua personagem, Lobato a
dota de atributos que lembram os da lendária virgem dos lábios de mel. Para que se
compreenda essa linha de interpretação, importa conhecer, na sequência, o referencial
teórico que a sustenta.
Para Julia Kristeva (1969 apud PERRONE-MOISÉS, 1990), “todo texto se constrói
como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele é uma
escritura-réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s)”. Perrone-Moisés explica:
Para Kristeva, portanto, as “fontes” deixam de interessar por elas mesmas;
elas só interessam para que se possa verificar como elas foram usadas,
transformadas. As “influências” não se reduzem a um fenômeno simples de
recepção passiva, mas são um confronto produtivo com o Outro, sem que
se estabeleçam hierarquias valorativas em termos de anterioridade-
posteridade, originalidade-imitação. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94).
Na composição da personagem Peninha, portanto, Lobato transforma lindamente a
fonte buscada em José de Alencar: enquanto a jovem índia Iracema “guarda o segredo da
jurema e o mistério do sonho” (ALENCAR, 1980, p. 40), a criança Peninha guarda o segredo
de tornar uma pessoa invisível como ela. Das mãos da filha de Araquém, surge a bebida de
Tupã, capaz de provocar os mais belos sonhos nos guerreiros tabajaras. Das mãos da
criatura ficcional lobatiana, as crianças recebem o “pó mais mágico que as fadas
inventaram”, o pó de pirlimpimpim, e viajam pelo mundo das maravilhas.
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