Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 231

Derrida (2001) exemplifica isso ao fazer referência à casa de Sigmund Freud
transformada em museu: documentos pessoais, cartas, anotações privadas do
psicanalista passaram a se tornar atração turística aberta à visitação pública. Tal
passagem não poderia acontecer de modo inteiro, visto que é constituída por cortes,
escolhas, seleções e descarte de certos materiais; ou seja, mostrar alguns sentidos
de/sobre a moradia do fundador da psicanálise corresponde a silenciar outros. E ainda,
na leitura de cada um diante deste arquivo freudiano, um outro arquivo é tecido
particularmente, uma leitura solitária que guarda im-pressões, sofre recalcamentos, que
se enovela ao arquivo construído do sujeito até ali (estrutura) em encontro com o novo
arquivo-moradia (acontecimento), uma interseção entre passado e futuro. O fato é que,
da casa de Freud, fica a anotação para problematizar o quanto de falta impera no
arquivo que tenta driblar o lacunar e inscrever uma totalidade ilusória. O arquivo não
com-porta tudo, tampouco está em sua ordem o fato de tudo nele poder guardar; há
ainda uma condição estrutural de todo arquivamento que, como vimos anteriormente,
precisa ser levada em consideração, a não-neutralidade do que é retido como efeito de
verdade.
A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo
(en mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo ‘em mal de’, estar com
mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma
perturbação ou disso que o nome ‘mal’ poderia nomear. É arder de paixão. É não ter
sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde.
É correr atrás dele ali onde mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É
dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo
irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia
de retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. (DERRIDA, 2001, p.118).
Está posto, no recorte acima, o desejo de remontagem ao todo, algo inacessível ao
humano, visto que recuperar o começo absoluto do arquivo (e dos atos de linguagem) é-
nos completamente impossível. Por isso, criar um arquivo e restituir-lhe um corpo
material conta sempre com a instância do limite, já que muitos documentos (e tantos
dizeres) escapolem na medida em que outros se somam encadernados no âmbito
institucional. Concordamos com o autor francês (DERRIDA, 2001, p.81) quando ele
formula que o morto sustenta o arquivo, apresentando o exemplo da voz gravada na
secretária eletrônica que faz sobreviver o que, em um tempo anterior, seria uma
presença viva, mas agora já não é mais, já que se trata de uma voz “que não responderá
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