A escrita historiográfica, seus protocolos e fontes - page 70

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contornos geográficos do Estado. O mesmo discurso encontrado nos textos que
exaltam a administração de Afonso Botelho no Paraná está presente nos textos de
“outros heróis”, como o General Gomes Carneiro, “o defensor da República” durante a
Revolução Federalista; Ângelo Sampaio, a “ilustre vítima de Canudos”; e Mariano
Pinto, o “herói esquecido” da Guerra Cisplatina. Ao rememorar “os heróis”, Carneiro
tentou reforçar o elo que devia existir entre o presente, o passado e o futuro.
Elo este que, na década de 1950, na percepção de David Carneiro, parecia
andar trincado. A onda de prosperidade, iniciada em 1940, em decorrência dos lucros
com a economia do café e com o aumento da densidade demográfica, estimulou o
investimento em urbanização, mas uma urbanização sem sensibilidade com o seu
passado. Avaliando esta conjuntura, David Carneiro questionou o progresso destruidor
e asseverou
Da necessidade de proteção aos monumentos que atestam nossa velha
cultura
em artigo alocado nas primeiras páginas da revista (CARNEIRO, 1950-1951, p.
8-9).
Sigamos analisando os argumentos elencados nesse texto, observando como
David Carneiro compreendeu seu presente e postulou uma relação necessária com o
passado para, então, projetar o futuro.
Segundo Carneiro, a “picareta da evolução” estava derrubando a arquitetura
característica dos antepassados lusos, projetando o retrato de uma terra sem
passado, como se tivéssemos vindo do “ar”, “sêres humanos sem antepassado [...]
progredimos sem conhecimento das origens remotas do progresso material realizado”
(CARNEIRO, 1950-1951, p. 8). A questão também está no olhar de David Carneiro
como historiador progressista, cuja visão dos fatos resulta de um encadeamento: a
história apareceria lacunar sem um ponto de referência, sem onde assentar a
“evolução”.
O historiador buscou uma possível origem para o desdém com o passado de
tradição portuguesa. Em sua análise, possivelmente, o desapego com as heranças
lusas se iniciou com as primeiras correntes imigratórias alemãs, ainda no século XIX.
Sem uma política de aculturação, a vinda de imigrantes de diferentes nacionalidades
“foi como a ingestão de alimentos pezados por um estômago que não houvesse ainda
iniciado processo digestivo” (CARNEIRO, 1950-1951, p. 8). A superioridade cultural
atribuída aos colonos aliada à não aculturação foram responsáveis pela “anarquia
cultural” e a crescente indiferença com as raízes históricas, as tradições, que se
estabeleceram no passado colonial e imperial conduzido por portugueses.
Assinalando sua posição conservadora em relação a sua herança portuguesa,
Carneiro, por mais de uma vez na revista, referiu-se ao imigrante como uma espécie
de “ameaçador” ao passado luso legítimo, na medida em que não buscou se integrar à
cultura nacional. É importante lembrar que em 1951 estamos no contexto do pós-
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